Sem cem...
Eu ouvia barbaridades a respeito de coças de pai. Que fulano, quando batia no filho,o deixava desacordado, que sicrano tirava sangue. Aí só faltava o beltrano que alémde o tirar, também o bebesse. E pais com cara de mau, muitos eu vira passar, sem querer nem pensar o que seria uma daquelas feras ter que enfrentar.
Um desses pais, se dizia - eu não via - chegava ao requinte de obrigar seus filhos homens a desfilarem na rua com os vestidos de suas irmãs. Mesmo se fosse fantasia, duro era à riviria. Mas meu dia também ainda chegaria, ainda que longe de toda aquela estonteante selvageria.
O que me recordo bem claro é que tinha meus onze anos, usava calças curtas e que tinha criança pequena em casa. Papai tirou aquele maço de notas de cem cruzeiros do bolso - acabara de receber seu ordenado, provavelmente - deu-me uma delas e me mandou comprar carne.
Só sei que não determinou que fosse filé, pois a esse só alcançavam os próceres e potentados da cidade. Até o contra era a nobis quoque peccatoribus contra-indicado. Daí, deve ter dito carne boa pra bife, tipo coxão duro.
Minha experiência com açougue era, na melhor das hipóteses, traumática. Não que o sangue - da vaca - me assustasse ou enojasse, e tampouco mosca que por lá voasse e pousasse. Era simplesmente por que eu não fazia noção do que fosse carne boa. Cruas, achava todas feias, fibrosas, gordurentas, nervosas.
Mas fui cumprir a missão. Era um começo de tarde que prometia - e como. Sol a pino, de rachar pepino, tomei o pedaço da travessa São José, ou beco-sem-saída mesmo, ganhei a rua principal, a São José, ainda sem calçamento àquela época, e aquela época devia ser a de Jânio, fui subindo em sua rampa relativamente suave para uma criança de onze anos, e subindo subindo cheguei à rua Velho da Taipa, onde dobrei à esquerda e, com mais uns duzentos passos de tartaruga cheguei ao açougue do Iraci.
Era tradicional aquela casa de carnes da cidade, ainda que periférica. Tinha uma balança Fillizolla, já mais moderna do que as de dois pratos dos demais açougues, tinha um relógio decorativo, em que um dos ponteiros simulava a perna de um jogador de futebol fazendo embaixadas ao longo de todo o mostrador.
E tinha gente que entrava e saía, cães à espera de um naco rejeitado, e as carnes paulatinamente sendo desossadas daquele enorme carcaça dependuranda num gancho. Quando chegou minha vez no balcão de cimento, nem balbuciei, nem precisou de atendimento: enfiando a mão nas algibeiras, rasas como só elas, senti-me, porém, sem a nota de cem. Cadê ela, Deus meu?
Saí de fininho, fazendo o caminho inverso,com os olhos pregados no chão - e nada, neca de nada, fui constatando de testa afogueada como se sobre mim desabasse um verso inteiro, uma fatwa completa, uma praga nada discreta, do Ecclesiastes. O mundo iria desabar.
O diálogo de meu regresso à casa paterna foi breve:
- Cadê a carne?
- Não tinha - e pronto? Vencido o primeiro obstáculo, minutos depois materializou-se o segundo:
- Então me dá o dinheiro aí.
Não dei, não dei não. Só admiti que o perdera. E aí então não houve perdão. A mentira, confira, pernas tinha, mas eram mais curtas que as minhas. Ali o céu desabou, e me desembestei pelo quintal, sei que consegui dar uma volta em torno do pé de limão, mas não foi o suficiente pra salvação.
Pego, recebi minhas palmadas, na popa bem aplicadas, afogueadas. Eu que já chorara pelo medo, chorava agora pela dor e ainda choraria pela vergonha, sem ter a cara onde por. Ou a popa, seja o que for.
Mas, sob o testemunho ocular, visual e auditivo de mamãe e de toda irmandade - que pediam clemência no vigor do castigo - sobrevivi. E, com efeito, fora uma coça limpa, merecida e na exata medida, sem cinto, chicote ou safanões.
Só a popa é que não se poupara. Com a ordem imediata e inapelável de ir procurar o dinheiro pelo mesmo trajeto que fizera. Já que não podia sentar mesmo, saí, a esmo.
Por muito menos - me orgulhei - Jânio desistira.