Cabeça leve
Ramiro andava de cabeça leve quando foi passar uns dias com a irmã Anita. Mas pra criançada de ambas as famílias, e da vizinhança, foi uma festa, festança, tantas as novidades que surgiam e se multiplicavam, apesar da brevidade da visita.
Mana Belzinha caiu logo de paixão pelo segundo filho do visitante, Alírio, dos cabelos negros e pose de Rudy Valentino, em botão. Somadas as idades, o casalzinho não chegava a vinte anos, mas já lhes parecia soar - em segredo, compartilhado só no olhar - a lira da eternidade.
Fora das armações do Cupido, nos entretínhamos, contudo, com a caçulinha da família hollywoodiana, que se esforçava para pronunciar seu próprio nome corretamente: Conceição da Piedade Valadade. Valadares ainda lhe era inacessível.
Até que surge a notícia arrebatadora: Ramiro havia fugido. Fugido pela janela do quarto da frente, assim como ao mundo viera e, como o povoado era muito pequeno para as suas graças, resolvera tomar o rumo do mato, adjacente, e menos gracejante.
Os adultos e os mais crescidinhos puseram-se-lhe ao encalço e poucos minutos depois voltavam com nosso herói, enrolado num providencial lençol. Ou seria virol?
A partir daquela escapada, os familiares passaram a tomar o maior cuidado e manter o homem sob cerrada vigilância. Menos os dous pombinhos, que arrulhavam, arrulhavam, e outros folguedos pra si arrumavam.
Restabelecido, e o susto já ido, Ramiro, do lado da rua, vem conversar com papai, no nosso quintal, só com uma telinha de arame a separá-los. Como se nada tivesse acontecido, trocaram amenidades, argumentaram e até filosofaram, para o gáudio da meninada que se reuniu em volta, dos dois lados da cerca. Parecia haver perdido a leveza a cabeça do Ramiro, todavia seu pesado pé, ornado por um sapato marrom, deixou marca indelével naquela cerquinha, que se abaulou de vez.
Fiquei brabo - mas só depois. E o externei a papai,dizendo que ele devia cobrar o prejuízo ao Ramiro por ter estragado a nossa cerca. O velho me olhou e perguntou: tá ocê também de cabeça leve?"