Carta à família
As colunas de concreto se tornavam como tijolos sobrepostos, pois a qualquer hora podiam desabar. Vidraças caras e arranjadas precisamente na feitura da igreja eram despedaças durante a tempestade de tiros pelas tropas. Ruas desertas, ruas fantasmas, eram como corredores poloneses, mortais e sangrentos. O cenário expressava em todas as suas formas o detrimento da mente humana em submeter uma sociedade a aquele tipo de comportamento.
Muitas coisas se passavam na mente daquele soldado tão jovem. Sabia que era apenas um garoto perto da grande experiência que seus companheiros carregavam de outras guerras. Mas sabia também que não era o único garoto, haviam vários lutando e morrendo naquele péssimo ambiente e todos, seja de qual fosse o lado, queriam ir para casa.
O término da guerra era incerto e, as dúvidas não podiam ser tiradas com simples respostas, pois ninguém tinha certeza. Nem os próprios comandantes. O pior de se pensar nessas horas é o que essas dúvidas podiam significar. Nelas não existiam limites, e a morte não era o extremo desse limite e sim, apenas o começo.
O céu nublado atrapalhava bruscamente a visão. Pensamentos negativos rondavam a mente do jovem como urubus famintos de seu ser. Estava sozinho em ruínas, destroços e muitos, muitos corpos. O frio intenso fazia seu corpo inteiro latejar, apesar da sua roupa de soldado ser preparada para resistir a tal. Ela estava muito desgastada. Havia escapado de tantas situações delicadas naqueles últimos dias que não compreendia a sua própria existência, era um milagre.
O soldado que tinha como defesa apenas um resolver com alguns cartuchos, apontava-a de forma profissional a todos os cantos e caminhos pelo qual passava. Apoiava as duas mãos de forma firme, como um eixo perfeito, assim como aprendera no treinamento antes da guerra. As mãos trêmulas atrapalhavam a sua concentração, mas naquele momento nada mais importava, era tudo ou nada. Ou era chegar ao término da guerra são e salvo ou era morrer e receber boas vindas do inferno. Havia derramado tanto sangue naquela guerra que para ele o perdão era impossível.
Dizia-se sempre que o silêncio na guerra é o caminho da vida. O jovem acreditava nisso e em cada passo gastava uma grande quantidade de energia para ir com cautela.
O soldado fazia seu caminho entre o mundo animal. Olhava para frente e vasculhava os ângulos tomando cuidado. Olhava para o alto e para os pontos estratégicos, “os atiradores de elite eram muito mais eficientes do que ignorantes com metralhadoras” pensava. Ao contrário destes o atirador era silencioso, calculista e frio, e por eles o jovem não queria ser morto. Queria ir pra casa, apenas ir pra casa.
A sua frente avistou um prédio, estava com partes mutiladas e quebradas pelas granadas, mas talvez fosse um bom lugar para encontrar munição ou qualquer outra coisa que o ajude nesta situação. Começou a entrar e de forma direta executou os movimentos estratégicos, vasculhando o perímetro.
O térreo do pequeno prédio era um espaço limitado, toda a mobília estava destruída. Vários corpos se estendiam no chão, alguns mutilados e outros completamente desfigurados. Aquela situação o fez desistir de continuar na avaliação. Não havia nada, só destroços e sangue.
Caminhava novamente a entrada da porta quando ouviu um gemido baixo de dor. Virou-se para o lugar de onde o barulho viera de forma automática e seu coração disparou em adrenalina. Ouviu um som de respiração sufocante e um ruído. Sabia qual era o ruído, como se uma pessoa estivesse se afogando com o sangue da própria garganta. Já havia presenciado milhares de cenas assim. O homem seja lá quem for estava muito ferido.
Caminhou brevemente para a fonte dos gemidos já prevendo a cena. Atrás de uma montanha de mobílias e destroços estava a figura. Sentado no chão e apoiado na parede, o soldado das tropas inimigas experimentava a mais agonizante forma de morrer.
Percebendo a posição inofensiva do soldado inimigo, abaixou a arma e olhou nos olhos ensangüentados do homem. Sua percepção diante daquela cena lhe trouxe de volta o conceito do valor intrínseco da vida humana, uma coisa que não pensava há algum tempo. Um sentimento filantrópico o abateu abruptamente e não pôde conter as lágrimas.
- O que aconteceu? – o jovem sabia que a pergunta era estúpida, estavam numa guerra.
Mas a cena era forte. O soldado estava mutilado, sua perna direita havia desaparecido restando apenas a coxa, que sangrava muito.
O jovem não esperou por nenhuma reação, a dor que o soldado estava sentindo era o extremo da agonia. Ajoelhou-se, pegou do bolso todos os envelopes de tinha de morfina e espalhou-os na ferida.
O alívio pôde ser visto no semblante do homem, mas a situação era a mesma. O soldado, que era bem mais velho que o jovem, sabia que iria morrer. Ele virou-se e fitou o jovem e disse quase de forma inaudível:
- Muito obrigado.
A língua diferente não impediu o jovem de entender o recado. Nem passou pela cabeça do jovem expressar um “de nada”, sentiu-se na obrigação de fazer aquilo e suas lágrimas ainda concretizavam sua dor e angustia diante do ocorrido.
O soldado ferido com muita dificuldade levantou a mão até o bolso da camisa. Tirou um papel dobrado. O jovem rapidamente reconheceu a folha. Todos tinham uma. Uma carta para a família.
Se todo soldado pudesse desfrutar de um último desejo este seria que a carta para a família pudesse ser entregue. As últimas palavras para as pessoas que mais amamos.
O soldado estendeu a mão com o papel para o jovem. Que entendeu o gesto sem nenhuma palavra.
- Se puder, rapaz, por favor...
- Sim senhor – Disse o rapaz balançando a cabeça, banhado de lágrimas pela face.
- Qual é seu nome? – perguntou o soldado ferido.
- John – As palavras rocas quase que não soaram.
Pegando a mão do jovem o soldado disse:
- Não siga atalhos John, seja forte – o sangue no rosto escorria – você esta perto, a guerra vai acabar. Agora vá, por favor.
Sabia que precisava sair, o perigo era constante. Mas sua mente estava tão confusa que não interpretou as coisas instantaneamente. Como em câmera lenta ele se lembrou de sua mãe e suas irmãs. Lembrou do momento que perdeu o pai também numa guerra, com um tiro na cabeça. Não recebeu a carta dele, não tinham ao menos se despedido. Desgraçados! Não acharam nem o corpo, nem nada.
O jovem tirou o capacete, passou a mão na cabeça e suspirou. Parece que suas motivações não estavam tão fortes, pensou até em desistir. “Por que não? Talvez a guerra nem estivesse acabando, esses boatos correm por aqui faz meses”. Olhou o soldado ferido, a família dele iria perdê-lo por uma estúpida guerra. Uma mísera ambição de uma única pessoa custa a vida de centenas e milhares de homens inocentes.
O soldado mutilado olhou para o jovem de forma fixa e percebia-se nele a instabilidade do rosto:
- John, você levará a carta para a minha família?
Com o rosto trêmulo, mas firme, o jovem olhou para o companheiro das tropas inimigas e disse:
- Eu juro que vou.
Em um tom confortante o soldado respondeu:
- Que Deus o Abençoe.
Foi a última frase.
John tirou a corrente de identificação do cadáver e guardou-a. Levou suas mãos até as pálpebras do morto e as fechou.
- Descanse em paz, meu amigo.
Cobriu o corpo com um tecido que estava no chão. Ergueu-se, levou as mãos até a testa e fez uma saudação de soldado. Virou-se em direção a porta e carregou a pistola. Suspirando, disse:
- Não siga atalhos... Não siga atalhos.
Tiago Fernandes Rodrigues