Você Não Fazia Parte Dos Meus Planos (Cartesianos)
Eu era apenas um x. Um reles x. Galgava por entre equações da vida à procura de alguém que fosse determinado o bastante pra me ajudar a descobrir quem eu era. Maldita hora foi essa em que você apareceu.
Você não era um y, um z, um a, nem nada disso. Você não era uma incógnita. Muito pelo contrário. Você parecia confiante de si mesma, ali, naquele fim de tarde, seu vestido vermelho contrastando com a calçada destruída em que você repousava e o muro cinzento daquela casa abandonada que você parecia utilizar como espaldar.
Foi naquele momento que algo mágico aconteceu. Você olhou pra cima, eu olhei pra baixo, e através da igualdade que separa a incógnita dos números reais na equação da vida, você me enxergou… como se eu também fosse real.
- Sente-se. – você me convidou. Não sei muito bem, mas naquele momento, parecia que você tinha se simpatizado imediatamente comigo. Talvez você se simpatize imediatamente com todo mundo.
Eu não estava acostumado a sentar em calçadas com estranhas e involuntariamente lancei um olhar de curiosidade sobre você.
- Prefiro calçadas às cadeiras. – você complementou.
- Por quê?
- Cadeiras podem quebrar. Se ela quebra com você em cima, você se estatela no chão. Calçadas não.
E assim eu sentei.
Você sempre gostou de calçadas. Acho que é porque elas sempre estiveram presentes em sua vida. Por exemplo… Quem diria que uma calçada velha e arrebentada, de uma rua tão qualquer que nem seu nome estava legível na placa torta da esquina, seria a responsável por me jogar para o outro lado da equação… e nós dois ficarmos juntos? Se bem que esse foi um péssimo exemplo. Eu estar perto de você não foi algo relevante na sua vida.
- Quem é você? – perguntou-me.
- Eu sou um X. – respondi envergonhado, talvez por já saber que você não era como eu. Você parecia segura fora de sua lucidez. Já eu parecia perdido dentro da minha.
Você me olhou com um aparente interesse. Talvez aquela fosse a primeira vez que encontrasse uma incógnita tão perto de você, do mesmo lado de sua equação. Só talvez.
- E você?
- Eu sou Nove. – respondeu.
Eu não podia negar que nove era um número de respeito. É nada mais nada menos que o algarismo de maior valor na escala numérica. Poderia eu ser um nove também para juntos formarmos um dezoito ou um oitenta e um ou simplesmente um noventa e nove?
- Você sabia que se juntássemos todas as calçadas do mundo uma em cima da outra, conseguiríamos alcançar outra galáxia?
- É mesmo? Onde você viu essa informação?
- Acabei de inventar.
E você dizia tudo com tanta convicção, que era impossível não levar a sério. Você parecia ter maestria em pensar e dizer sobre as coisas mais aleatórias possíveis. Até mesmo sobre o silêncio, visto que de tão encantadora, ela também me constrangia. Às vezes, durante a conversa, eu pegava nossos olhos flertando e eles pareciam se conhecer faz tanto tempo… O que me levava a crer que, em silêncio nós éramos iguais. Mas quando eu abri a boca, nossas palavras se divergiam e digladiavam, e as suas sempre venciam porque você era boa nisso.
- Será que eu também sou um nove? – pergunte inocentemente.
- Por que acha isso?
- Digamos que temos muita coisa em comum.
- Mas fisicamente somos diferentes. Você está mais pra um seis. – você não parecia muito contente com a minha colocação.
- Não é disso que eu estou falando. Veja! Nós nos damos tão bem… E que número pode se dar tão bem com outro número senão um igual a ele, já que podem até se dividir um pelo outro que vai dar um número inteiro?
- Você está alucinando.
- Estou deduzindo.
Nove riu com desdém.
- Deduzindo… - repetiu para si mesma em tom de desprezo.
- Você também estava deduzindo quando falou sobre calçadas alcançarem outra galáxia.
- Mas eu não sou uma incógnita.
E aquela fora a primeira vez que você me diminuíra a uma criatura imprestável e indigna de um dia se descobrir um número tão bom quanto você.
Após sua mudança repentina de humor e sem medir as palavras ao me rebaixar de modo tão cruel, levantou-se e foi embora sem olhar para trás, me deixando apenas x naquela chuva, com minhas mãos molhadas e meus mil pontos de interrogação.
É. Não fora naquela tarde que descobri afinal quem eu era.
Passara a vida toda desse lado da vida, convivendo apenas com outras letras… y, a, z, b, h, enfim, o alfabeto inteiro. Todos querendo se descobrir, se conhecerem, se decifrarem. E era isso que eu queria. Eu queria abrir a boca de dizer “oi, eu sou eu”. E não um x. Um x pode ser qualquer coisa. E eu não posso e nem quero ser qualquer um. Não há nada mais frustrante do que olhar para o espelho e encontrar o reflexo de uma incógnita. E era assim que eu me via. Um mísero x querendo se encontrar. Equações complicadas são assim… Demoradas e desgostosas, pra não dizer ‘angustiantes’.
Voltamos a nos encontrar mais vezes. Você, nove, veio pedir desculpas pelo seu comportamento agressivo e disse que de vez em quando perdia o controle sobre suas convicções e deixava as palavras escaparem como chicotes desgovernados que não temem acertar ninguém. Aquela explicação realmente me assustou. Aí você me abraçou, lembra?
Um abraço real por um número real. Meu primeiro abraço.
- Talvez você seja mesmo um nove. Você é bom, sincero…
E eu não conseguia enxergar verdade nas suas palavras. Tudo era estranho demais pra mim. Você era muito misteriosa e enigmática. Mais que eu. No fundo, acho que você é quem deveria ser uma incógnita.
Debruçados sobre a igualdade da equação, falávamos sobre tudo. Você sempre parecia feliz em me ver, fugindo dos outros números reais para perder tempo com uma incógnita, mas à noite, descansando sob as estrelas, eu sentia seus sorrisos sendo lançados para outros, e todos muito melhores que eu. Eu sabia que havia a possibilidade de acordar sem ter você me esperando, e às vezes eu esperava nem acordar.
- Um quinze veio me cortejar. – você me contou. Em quatro dias, você já era minha confidente. Ou será que você me contava de propósito?
- E o que você fez? – perguntei com medo da resposta.
- O que qualquer nove faria. – disse com um sorriso malicioso, e após um ar de suspense, me respondeu: - Imagine um quinze dividindo seu amor com um nove? O que resulta desse amor?
Senti um profundo alívio, afinal. E sabe por quê?
Eu te amei escondido e você nunca percebeu. Ou percebeu e não quis me magoar. Ou percebeu, quis me magoar e fingiu que não percebeu pra me torturar quando estivéssemos longe.
- Um número que não é inteiro?
- E não é o que pretendo pra minha vida.
Então eu sabia que pra te ter, eu precisava ser um nove… ou um dezoito… ou um vinte e sete. Mas isso seria muito difícil. E não crendo em minha própria capacidade de ser um número tão pomposo e bonito, comecei a sentir um inconsciente medo de descobrir quem eu era e acabar não sendo quem você queria.
Eu preferia ser uma incógnita e ter você comigo a ser real e abraçar seu profundo desprezo.
- E se eu não fosse um nove?
Você me olhou com estranheza.
- Não tenho preconceitos. Você é um ótimo amigo.
Amigo.
- É difícil alguém que encare com normalidade o conforto que sinto fora da minha sanidade. – continuou. - Deitar em calçadas úmidas faz parte.
- É gostoso deitar em calçadas úmidas com você.
Mas seria melhor se deitássemos não apenas como amigos.
- É gostoso deitar aqui com você também. – você admitiu.
Como amigo.
- Mesmo você sendo apenas uma incógnita.
E mais uma vez, me senti tão diminuído à sua presença… Por que você insistia em fazer isso sempre nos piores momentos? Porque gostava sempre de aproveitar o meu ápice de sentimentalismo pra me enfeitar com o nada que eu era? E eu estava tão apaixonado, que chegava mesmo a acreditar que era sem querer.
Desde o instante em que te conheci, a vontade de me resolver aumentava gradativamente. Tudo o que eu queria era viver do mesmo lado da equação que você. Lá. Com todos os reais. Eu queria estar ao seu lado quando essa equação terminasse. Eu queria te provar que eu poderia ser alguém bom pra você. Eu poderia ser um nove. Ou um dezoito. Mas e se eu fosse um sete? E se eu fosse um cinco? Ou um onze? E pior… E se eu fosse um ZERO?
Eu te queria tanto… E cada vez mais me determinava a te mostrar tudo o que sentia. Foi assim que tudo mudou.
- Meu maior sonho é me decifrar, me entender. Mas nunca ninguém tentou me ajudar. – eu disse, e você não pareceu muito interessada. Nem sequer olhou pra mim, nem esboçou reação. – Você já ajudou alguém na mesma situação que eu?
- Algumas vezes. – você respondeu, olhando o amanhecer daquela calçada fria e úmida em que deitávamos, e você fazia minha barriga de travesseiro.
- E como foi?
- Não tenho do que reclamar.
- E você… poderia me ajudar? – perguntei com muita relutância.
Você suspirou descontentamento. Sentou-se e me encarou com um olhar diferente… uma mistura de piedade e raiva.
Assim você resolveu-me.
Resolveu me abandonar.
Lembra quando eu disse que nós éramos iguais e ao mesmo tempo diferentes? Não era só pressentimento. Realmente tínhamos uma simpatia enorme um com o outro, um carisma intenso que nos ligava… Química é como chamam isso, não é? Tínhamos química. Mas você invadiu minha vida, trazendo uma turbulência silenciosa pra dentro da minha alma, desequilibrando nossa equação e balanceando a seu modo para que eu permanecesse ao seu lado até me abraçar pela última vez, se levantar e atravessar a rua, caminhar sozinha pela outra calçada até sumir na esquina mais próxima, fossem embora sem olhar pra mim, me deixando sozinho naquela calçada espaçosa que eu deitava como se fosse cama, desejando que fosse caixão. A calçada nos juntou e nos separou. E na semana seguinte, eu ouvi dizer que você e um dezoito estavam juntos, e dividindo seus sentimentos mais profundos um com o outro, um lindo dois apareceu, fruto do romance que você não teve comigo.
Eu te perdi sem motivos para merecer tal tratamento. Foi assim que, voltando pra casa com muito mais interrogações e sem você, me olhei no espelho e não enxerguei mais aquele reflexo de incógnita que há anos eu vinha evitando. Eu enxerguei você. Eu te vi, nove, em seu vestido vermelho, virando as costas para mim. Você, com esse seu modo vil de enfeitiçar os corações e os atirar para o infinito sem dó nem piedade. E depois já não era você. Era eu.
Eu era um nove.
E você? Durante o curto tempo que passamos juntos você conseguiu com competência mascarar esse seu outro lado, que atinge como chicote e nem ao menos se importa com os flagelos deixados, e que flerta pulando de um romance a outro, deixando todos não terminados, montando ruínas em cima do vácuo. Você era sim tudo o que eu pensava. E mais. Você espatifou meus sentimentos, zombava em silêncio da minha falta de identidade. Você me fez acreditar que era real e não era. Isso é algo que eu nunca faria com você. Como eu não pude, durante todo aquele tempo, ver que você era assim? Como não pude enxergar com meus estreitos olhos de x, que você era um nove negativo?
É isso. Agora eu era real e você era negativa. De certo modo, pudemos viver do mesmo lado da equação após essa não-história de amor. Nossos olhares se encontravam e de repente fugiam. Os seus primeiro. Como quem esbarra com o próprio inimigo numa esquina, pede desculpas e sai andando o mais rápido possível pra não precisar nunca mais chegar perto de quem se odeia.
Foi assim durante algum tempo. Mas graças a Descartes isso tudo acabou. E no atual plano cartesiano em que a gente se eterniza agora, estamos bem longe, para sempre, e nossos olhos nunca voltaram a se esbarrar por acidente, e eu nunca mais deitarei em calçadas com você, e nunca mais terei notícia de você e seu dezoito. Eu e você estaremos para sempre separados por um eixo de abscissas.