SALVADOR

Noêmia há muito tempo não sorri de verdade. Apenas risinhos de lábios cerrados. Pelo que ouvi, ela sempre foi tristonha, desde criança; e a situação piorou depois de abandonada pelo noivo, três horas antes do casamento. Aí, a coitada se afundou de vez. Mesmo assim, persistente, insistiu em outros relacionamentos ao longo da vida, mas como não teve sucesso, por fim, enclausurou-se num apartamento de dois quartos, herança dos pais, resolvida a morar, viver sozinha, até o chamado da morte. Foi quando eu apareci, como tentativa desesperada de Joaquim, seu irmão caçula, de salvá-la. E até que funcionou. Na verdade, ela demorou um pouco para me aceitar; no entanto, essa minha simpatia irresistível resolveu tudo (modéstia às favas).

A triste mulher só conversa comigo. Eu e algumas dezenas de fotografias antigas somos o seu presente. Estica as feições enrugadas de sexagenária para fazer muxoxos e arregala os olhões verdes, quando cisma de contar-me suas vantagens do passado, quando revive os momentos registrados nos retratos. Ora perde-se nas imagens, como se tentasse resgatar as mesmas sensações do instante fotografado, ora ensopa o rosto em lágrimas, como criança que perdeu o brinquedo querido na correnteza violenta de um rio. Eu a escuto com paciência, fingindo entender tudo. Ela tem tanta intimidade comigo, que acaricia, carente, a genitália, bem diante das minhas vistas, nem liga. Eu também não ligo, embora, às vezes, fique meio ouriçado pelo cheiro. Mas respeito. Gosto de Noêmia.

Quando faz frio, tece roupas de tricô para mim. Quase morro de aflição, mas como sei que fica satisfeita ao me ver vestido com elas, eu suporto resignado. Não posso protestar, Noêmia é muito dedicada, prepara minha comida, meu banho, vivemos em plena partilha. Acho que ela desmancha sua solidão em minha vida.

Certa vez, dois ladrões entraram no apartamento. Estávamos na sala, assistindo à telenovela reprisada de tarde. Um deles, aos berros, pegou Noêmia e a sujigou com muita, muita brutalidade. E eu, tomado por uma ira instintiva, incontrolável, avancei nos dois e os agredi bravamente! Um ficou sangrando! Mesmo portando revólveres, fugiram apavorados. Não entendi; que ladrões medrosos! Ah, deviam estar bobos, de tanta droga. Sorte nossa. Ganhei apenas uma coronhada na cabeça, nada grave. Minha companheira, depois de reclamar zangada pela falta de segurança do condomínio, agradeceu-me entusiasmada, enalteceu-me, como se eu fosse um herói. A partir de então, seus cuidados comigo aumentaram. Acho que ela me ama.

Passamos semanas inteiras sem sair de casa, ela e eu vivemos um para o outro. Para ser mais exato, minha vida pertence a ela. Apenas Joaquim nos visita de vez em quando. Não gosto dele. Dá soquinhos em minha cabeça, insiste em jogar futebol comigo e machuca minhas pernas com boladas fortes.

Ontem, pela manhã, enquanto me fazia um cafuné, Noêmia me falou assim:

– É, meu companheiro, você é o único que me entende, posso dizer qualquer coisa, que me ouve em silêncio, sem contestar. Não sei como pude viver tanto tempo sem o seu amor. Passei quase toda a minha vida procurando desesperadamente ser amada por alguém, ser cobiçada por algum pretendente. Aí, quando encontrava um, logo estragava tudo com minha insegurança, com um ciúme enlouquecedor que me dominava. Queria saber de tudo o que faziam na minha ausência, ficava irritada se olhavam para outras mulheres. Eu os sufocava com meu zelo excessivo e cobrava retorno, gratidão. Eles se assustavam e iam embora. E a história se repetia, repetia, repetia... Com você é diferente; posso tomar conta de sua vida, controlar tudo o que faz, exigir sua dedicação, seu bom comportamento, vestir as roupas que eu bem quiser em você, quando saímos para passear nos lugares que eu escolho. Tenho completo domínio sobre sua existência, como sempre quis ter sobre as pessoas que me cercaram.

Não sei se estou feliz com o que escutei. Não sei se sou feliz. Noêmia impede que eu me relacione com outras criaturas, vigia meus passos e me repreende quando resolvo fazer algo diferente de sua vontade. Até me bate! Eu aceito, porque na maior parte das vezes ela é boa comigo. E porque é minha dona. Ser propriedade dos outros chateia. Mas não reclamo; abano meu rabinho e ela até sorri! Vida de cachorro é assim, é servir de humano domesticado, para quem quer brincar de Deus. Ah, meu nome é Salvador!

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 03/06/2013
Reeditado em 10/06/2013
Código do texto: T4323829
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