A SANTA DA BAIXADA
Dr. Vincenzo Bertolazzo, psiquiatra italiano, foi designado pelos cardeais do Vaticano para investigar o processo de beatificação do brasileiro Márcio da Silva, falecido aos cinquenta e dois anos, de causas naturais, em Belford Roxo, estado do Rio de Janeiro, Brasil, havia vinte anos exatos. Vários milagres foram relatados e atribuídos a Márcio, mas três em especial causaram espanto a todas as juntas médicas questionadas à época. O caso do transformista que teve o corpo queimado por um estandarte em chamas enrolado nele durante uma apresentação de dança e pirotecnia; queimaduras de segundo e terceiro graus o devoraram; no entanto, quatro meses depois, não havia sequer uma cicatriz! Ele afirmava ter apelado a Márcio. Outro, de uma prostituta aidética em estágio terminal, que teve sua carga viral zerada, sem medicamento algum, apenas com orações ao suposto beato, fato que os médicos não souberam explicar também, embora continuassem acompanhando a paciente. O terceiro era o mais impressionante: uma menina de seis anos, moradora de rua, foi torturada e estuprada por treze homens! Destruíram vários órgãos seus, estava praticamente morta! Pois a mãe afirmava ter clamado a tal carola da Baixada e a garota se recuperou, sem sequela alguma!
Vincenzo Bertolazzo conversou pessoalmente com todos os prováveis agraciados com os milagres de Márcio e também com pessoas de alguma forma envolvidas nas histórias: médicos, parentes, amigos; mas não se convencia. Não era possível! Na vida do investigado, nada havia de santidade! Quanto mais a vasculhava, mais duvidava de seus poderes milagrosos.
Afinal, quem foi Márcio da Silva?
Filho sem pai que era, perdeu a mãe muito cedo e teve de enfrentar a lida sozinho. Aos quatorze anos, vestiu-se de mulher e tornou-se Marcinha; a partir de então, ninguém jamais a viu sem maquiagens, brincos e pulseiras. Sempre de salto alto, com vestidos leves e soltos, a balançar a vasta cabeleira negra que cobria-lhe a cabeça. Todos gostavam dela! Dedicava-se a cada um dos amigos como se fosse o único. Se porventura, visse algum dos seus afetos envolvido em conflito, entregava-se inteira para a briga, em defesa do protegido. Morava num barraco de um só cômodo e tudo o que ganhava com shows de dublagens e campanhas diversas dividia com os outros. Católica fervorosa, ia à missa todos os dias. Orgulhava-se por manter a castidade e viver para Deus e o próximo. E a doação era tanta, que nenhum carola ousava condená-la, a despeito de seu comportamento nada convencional. Devota de Nossa Senhora Aparecida, mantinha sua imagem sempre brilhando sobre a penteadeira, entre dois vasinhos, cada um com uma rosa de cor diferente, que eram trocadas de quatro em quatro dias.
Passados três meses de exaustivas pesquisas, entrevistas e análises de laudos médicos, Vincenzo Bertolazzo, ainda no Brasil, finalmente concluiu seu trabalho, através de um extenso relatório, no qual se lia o seguinte parágrafo final:
“Embora ainda não haja explicações científicas para as espantosas recuperações de saúde ocorridas, não creio que possam ser atribuídas ao Sr. Márcio da Silva, que aliás, apresentava-se de maneira extravagante, vestindo trajes e mantendo trejeitos femininos e identificava-se como 'Marcinha'. Seu comportamento em nada condizia com o de um beato temente a Deus. Face ao exposto, eu, Vincenzo Bertolazzo, Promotor da Fé da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, não reconheço sua santidade.”
Concluído o relatório, imediatamente o enviou por e-mail aos cardeais da Santa Sé e saiu para jantar, pois eram mais de vinte horas e queria despedir-se do Brasil em Copacabana. Voltaria para o Vaticano na manhã seguinte.
A Cúria Metropolitana disponibilizou-lhe um automóvel com motorista, mas naquela noite, quis apenas o automóvel. Ao terminar o jantar, resolveu dar umas voltas pelas redondezas. Ao primeiro quilômetro percorrido, avistou, parado na esquina, um belo jovem de braços musculosos. Como se por instinto, parou o carro diante dele. O tal jovem se aproximou e inclinou a cabeça frente à janela do carona. Vincenzo nada falou. Abriu a porta. O outro entrou. E saíram sem destino. O rapaz lhe indicou um lugar ermo, onde poderiam ficar mais à vontade.
O local era mesmo muito deserto, nada se via, nada se ouvia. Tudo escuro! Silêncio absoluto. Garganta seca. Olhares perdidos, misteriosos e famintos. Uma aura de ameaça rasgava o ar e deixava o nobre italiano atormentado num misto de medo e excitação. De repente, a ameaça se realizou: o forte desconhecido o dominou e encostou-lhe uma arma na boca, exigindo dinheiro! Ele jurou não ter e chorou feito criança, implorando por sua vida! Mas o marginal agia como um surdo:
– Esta arma tá cheia de balas e vou estourar seus miolos com elas, sua bicha velha e safada!
Súbito, veio-lhe à mente a figura de Márcio da Silva. Sem tempo para concatenar coisa alguma, pôs-se a clamar:
– Santa Marcinha da Baixada, salva-me! Salva-me! Livra-me de todo o mal! Eu suplico!
O rapaz, ensandecido, apertou o gatilho uma, duas, três, quatro vezes. E nenhum tiro fez-se ouvir! Em seguida, como se brotasse do nada, uma viatura de polícia se aproximou, interceptou o carro e imediatamente prenderam o meliante michê, sob o choro acovardado da vítima. Dr. Vincenzo Bertolazzo, Promotor da Fé da Santa Madre Igreja Católica, estava salvo!
– Ainda bem que os senhores chegaram! Ele apertou o gatilho por quatro vezes em minha boca! Sorte que não tinha bala.
O policial respondeu espantado:
– Mas esta arma está carregada!