ELOS

Com frieza glacial, Ângela mirava o filho, que metia atabalhoadamente os parcos pertences na mochila, para mais uma fuga. Nem procurou saber se ele fugia da polícia ou de algum malandro em desafeto. A cena por tantas vezes repetida já não lhe causava espanto. Sentia nada. Absolutamente nada.

Tão distraída, nem respondeu quando Tiago saiu, deixando-lhe um ligeiro aceno de mão. Entregou seu tronco flácido à poltrona e se deixou levar às recordações...

Não entendia a relativa facilidade com que escapara daquele hospital, levando o recém-nascido roubado e deixando o seu, aleijado, para trás. E depois? Mudar de identidade, apagar seu paradeiro e nunca ter sido descoberta! É certo que contara com a influência da mulher do chefão da favela para conseguir tudo aquilo, mas ainda assim, parecia coisa do demo... Porque não tinha condições de criar um menino sem pernas! Não; não tinha! A pobreza aviltante... O barracão em ruínas... E na chuva então? Descer e subir o morro lamacento... Ele não seria capaz. E não poderia ajudá-lo, pois precisava trabalhar. Ter um filho dependente para sempre? E os estudos? E o trabalho? Além de tudo, pensava que se desse ao seu homem um filho defeituoso, ele não iria aceitar; já um filho completo, tomaria amor e assumiria a paternidade. Que nada. Só ilusão...

Finalmente, aceitou serem inúteis aquelas tentativas tolas de ludibriar a própria consciência. Inexistia argumento que justificasse seu crime. Pensava nos verdadeiros pais de Tiago... No filho rejeitado... Como estariam? Ai! O remorso carcomia-lhe caprichosamente as entranhas!

Quanto sofrera ao longo daqueles vinte e cinco anos! Desde criança, Tiago era só desgosto: cuspia nas professoras, obrigava os meninos menores a comer caca de cachorro, batia em todo mundo. Na adolescência, conforme a mãe temia, tornou-se um bandido, um capacho nas mãos de traficantes. E com pernas perfeitas... Pernas que lhe possibilitavam correr nos becos e vielas, fugindo ou armando emboscadas, saltar muros em invasões de casas alheias, mas que jamais serviram para o que fosse edificante. Embora sob limitadas possibilidades, até que ela lhe deu afeto, tentou, tentou, sim, oferecer uma vida mais serena para ele. Tudo em vão!

Ângela ainda dissolvia-se no espaço embaçado das lembranças, quando se assustou com Tiago escancarando a porta, feito um doido:

– Tenho que me mandar! Eles vão acabar comigo!

– Calma! Eles quem?

Mal concluiu a fala e logo foi surpreendida por dois homens armados que invadiram abruptamente o barraco, com revólveres apontados para o filho:

– Seu desgraçado, é agora que tu vai pro inferno!

A mulher, surpreendendo a si mesma, foi dominada por uma necessidade inexplicável de proteger a cria falsa e implorou, apavorada:

– Não façam nada com meu filho, por favor! Deem mais uma chance! Uma só!Eu prometo que ele vai resolver o mal que fez a vocês! Se por acaso ele não resolver, podem cobrar de mim!

As armas continuavam apontadas para o rapaz, dedos nos gatilhos. Tomada pelo desespero, a mulher se atirou à sua frente e recebeu o primeiro tiro em seu lugar. Antes de desfalecer, ela ainda pôde assistir a Tiago ser exterminado com vários disparos à queima-roupa.

Sirene, paramédicos, monitores, odor etéreo de doença, vestes brancas e muita agonia, entre um despertar de consciência e outro, até ser arrebatada por um sono mais profundo...

O sol anunciava seu regresso, lançando raios amenos por entre as frestas da janela da enfermaria. Ângela, prostrada sobre o leito, invadida por sondas e cercada por frascos, esforçou-se para abrir os olhos pesados. Sua primeira visão foi o rosto do médico que a examinava cuidadosamente. Teve a sensação de reconhecer-se nas feições daquele jovem e sério profissional. Ao inclinar um pouco o pescoço na direção do piso, percebeu que ele trabalhava apoiado em uma cadeira especial. O doutor não tinha as pernas.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 06/09/2012
Reeditado em 09/02/2014
Código do texto: T3868009
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