Carta a ninguém
De tudo, antes de transcrever a missiva presumi o cenário e o ânimo das personagens envolvidas no sentido de ornamentar o episódio em consonância com meu espirito melancólico e um tanto pretensioso em atingir a sensibilidade do desatento leitor. Portanto entrelacei o início e o fim do que ora exponho:
Já grisalho semblante esquisito quase morto de secura, o sujeito andava trôpego pelas paredes desbotadas do cômodo escuro iluminado somente por uma chama trêmula exígua que vinha da vela triste bastante derretida plantada sobre mesa. De repente, tomado de impulso desordenado fincou-se no assento diante da mesa próximo ao fogo brando e redigiu a carta endereçada a uma destinatária de nome S. Ao que consta posso afirmar com nítida certeza que jamais foi lida. Me oportunizei da redação por curiosidade quando encontrei aquele envelope surrado de antigo ao visitar uma moradia, há muito desocupada, na qual eu estava interessado. Li de antemão uma frase
contida no envelope logo abaixo do endereço que despertou mais ainda meu instinto oculto de bisbilhotar a vida alheia: "Leia só quando eu não estiver mais aqui". Num átimo abri o envelope destituído de um ínfimo pudor sequer, retirei o papel e passei os olhos no todo sem piscar. De um gole só sorvi palavra por palavra.
"No que virá amanhã, o hoje é passado e a linha do meu círculo já terá fechado com chave de pedra. Serei algo completo com início meio e fim descritível ao menos em parte feito colcha de retalhos. A você proponho que se mantenha firme soberba agarrada a sua inabalável fé na esperança, na felicidade e sobretudo no amor que sempre buscou. As minhas prediletas canções permanecerão as mesmas por muito tempo na sua memória até que a linha do seu círculo se feche também. Hoje com convicção posso ressaltar que somos iguais: eu carrego um pouco de você nas minhas andanças pela chuva e penso que você me tem nas suas viagens pelo vento. Os sonhos de nós esculpidos no ontem representam em mim os desejos mais belos e irrealizáveis escondidos na concepção indefinível e efêmera da beleza. A história de nós será possível de ser contada em poesia de poucos versos para ninguém ouvir e preencherá páginas e páginas de um livro sem título confeccionado a quatro mãos repleto de paixão e ternura . Um livro integralmente desinteressante ao leitor afeito a narrativas de grande importância literária e conteúdo de caráter universal. Hoje, lembrando o ontem junto a você, me vejo dançando abraçado com a minha felicidade que de repente abandonei no saguão de embarque. Sem pieguice, beijos do eternamente seu L..."
Não tenho dúvida, o sujeito postou a carta na manhã seguinte e desapareceu no amanhã sem nunca mais ser visto.
Nada tão interessante assim.