O Salvador
Fitou o sangue nas mãos, não era para ser assim. Não era. Olhou para os lados como se fosse possível alguém que não fosse ele entrar naquele recinto. Teve medo dos olhos que não encontrou.
O corpo inerte estatelado no tapete beijava o proprio sangue. Sabia do prazer que sentira ao rasgar a carne com a lâmina da faca que todos julgavam santificada quando partia e repartia o pão em suas ceias preparadas aos fiéis escolhidos para sua mesa. Julgava-se um salvador, um a um planejava levar às portas dos céus através do poder que lhe fora concedido. O poder de purificar através da morte.
Em cada paróquia vitimara um dos seus beatos, ao todo cinco, dois garotos e três garotas. Escolhia-os pelas condições sociais e financeiras, trazia-os para auxiliá-lo nos ritos da santa missa e doutriná-los. Aqueles que cediam aos seus apelos sexuais eram os escolhidos, ungidos e por ele, com sangue beatificados. Os corpos jogados em rios, em estradas, se encontrados - dois deles foram-no - sentia de fato a dor do infeliz, chorava, rezava, dava-lhe um enterro que a família não teria condições.
Em sua vilania, vitimou um em cada cinco anos e em locais diferentes. De um extremo ao outro do país a batina facilitava sua missão.
Mas dessa vez dera tudo errado, a garota esfaqueada gritara e alguém ouvira, tinha certeza. O cadáver no chão não tinha mais sexo, não tinha mais cor, não tinha mais sabor, não pra ele. Blafesmou a propria sorte, pediu aos céus ajuda com a remoção de sua vítima, antes que alguém aparecesse. Eram tantas as providências, o tapete, a faca, o sanque, a roupa, a pressa, o tempo, o grito que saiu de seu santuário. O grito ecoava lá fora na mente de outra pessoa. Não o entenderiam, não entenderiam a necessidade de lavar os pecados em sangue, o pecado em lágrimas...
E não entenderam... Antes que saisse do estado de comiseração por si mesmo, a batida na porta alertou-o para o perigo. Em vão...
Preso, julgado e condenado, jurava ser ele o salvador.
Impedido de salvar outras almas, salvou-se, não como gostaria. Não em um batismo de sangue, mas como Judas, enforcado no lençol de seu catre amarrado às grades de sua cela.