OS CAMINHOS DA VIDA, ENCONTROS E DESENCONTROS

Os caminhos da vida com todas as suas viravoltas, encontros e desencontros, ser gente para ser gente com todos os bem-feitos e malfeitos da natureza humana. Os benefícios e malefícios também!

Eram duas irmãs gêmeas – Reginalda e Reginalva. Os nomes quase iguais. E tão parecidas as crianças, de quase não se distinguir, salvo pelos pais e pessoas muito próximas, os avós por exemplo. Só estas duas tiveram o casal Floriano e Fidelcina. O nascimento das gêmeas causou muita dificuldade à mãe no ato da délivrance. E tanto se pareciam que precisaram nos primeiros dias usar uma fitinha azul e uma vermelha em cada qual. Tomaram uma decisão comum os pais. Não terem mais filhos. Iriam zelar por aquelas, dedicar-lhes todo o seu amor. E para facilitar o entendimento no trato do dia a dia, acharam bem dar-lhes um cognome que evitasse confundir a audição no trato com estas – Regi e Nalda. Regi a de fitinha azul. Nalda a de fitinha vermelha.

E segue a vida. Seio materno, mamadeira, papinha, mingau. Vestidinhos sempre de cores diferentes ainda que de igual modelo, calçados da mesma forma, do mesmo jeito o penteado nos cabelos finos e negos. A natureza cria tudo direitinho, ela mesma sabe decorar sem carecer de interferência nenhuma. A maciez e o negrume dos cabelos pareciam vir para confirmar os traços morenos de remoto cruzamento português/nativo. Floriano era moreno bem clarinho, Fidelcina de uma brancura puríssima.

Chega o tempo da escola. Conduzidas mão na mão pela mãe, uma de cada lado, eventualmente pelo pai. A idade de saírem sós e aos poucos se soltarem eventualmente uma da outra, terem amigas e amigos comuns ou diversos, nunca de estarem distantes uma da outra, de se perderem de vista. Ida e volta para casa sempre juntas, sempre. Mesma escola, mesma sala de aula e mesmo horário de saída de casa e da aula, de chegarem a casa. Em regra se combinavam para querer sempre a mesma coisa.

Chega a idade do despertar do amor, do namoro. Regi tem o seu namoradinho, Nalda ainda não. Cidade pequena, residências próximas, o namoradinho da primeira em regra as acompanhava até o portão da escola ou na saída desta até o portão da residência. Independentemente dos beijinhos e cochichinhos dos namorados, no geral o papo era comum aos três. Diversões, festinhas, livros, professores, colegas, fofoquinhas, essas coisas de adolescentes. Nunca uma divergência ou discussão. Sempre estavam de acordo.

Rozembergue, o namoradinho de Regi, ocasionalmente parados os três contemplava a namorada, depois a futura cunhada, fixava os olhos de uma para a outra e dizia:

- Vocês são tão parecidas que às vezes chego a me atrapalhar e confundi-las. Só o que as distingue é a cor da roupa e um pouco os gestos. A minha Regi tem ares de mais altiva e afoita, enquanto a Nalda revela-se mais humilde, mais simples.

- É, às vezes sou eu que sinto desconfiança de você. Fica entre nós duas, olha uma, olha a outra com olhar pasmado, parece duvidoso... Nada nos distingue para o seu sentimento?

- Não, não. Nada disso. Você é você, o meu amor. Seus olhos o dizem a toda hora. Eu admiro é a semelhança física. E até a espiritual. São como uma alma em duas pessoas. Falar nisso, Nalda já devia ter o seu preferido. Assim a gente estaria mais forte. Seríamos quatro para uma eventual encrenca.

- Quê! - responde Nalda. Deixa que sei de mim e o que pretendo. Estou só esperando minha hora.

Na verdade, não percebido mostrava um ar de constrangimento e certa tristeza nas palavras e nos gestos. Vez por outra se afastava dos dois, ficava para traz. Adiante os alcançava. O tempo passando tão bondoso e suave, tão gostosinho que nem percebiam. Quando se vê já é a preparação para o vestibular e a faculdades. Ele fazia banca com as duas, em casa destas, recebido carinhosamente pelos seus pais. Decidem os três pela engenharia. Em pouco lá estavam em aula, e como residissem próximos, os três juntos nas idas e vindas, salvo em algum dia que uma das duas não podia sair de casa, todo mundo sabe desses dias. Aí ele acompanhava a namorada ou a cunhada. E o tempo voando que mal se vê quando é período de aula ou de férias. Na mocidade é assim, o tempo anda a jato. Na velhice é dorminhoco. E Nalda, tempo passando e nada de namorado. Não procurava, descartava, preferia ser livre e livremente se divertir...

Chega a formatura dos três. Mesma data, famílias unidas, festa comum. Não demora o trabalho. E logo se dá o casamento de Rozembergue e Regi. Na oportunidade Nalda não estava bem de saúde e não pôde comparecer à solenidade nem a festa. Depois foi visitar a irmã e o cunhado. Deu que estava grávida e foi infeliz no parto. Deixou o filhinho só, na hora do nascimento. Não revelou o nome do pai. Quando, já à hora de fechar os olhos seu pai perguntou pelo responsável teve esta simples resposta:

- Agora já não adianta, a responsável sou eu. Zele pelo seu neto como zelou pela sua filha. Que Deus o faça feliz mais do que a mim. E expirou.

Regi pediu ao pai que lhe permitisse criar o sobrinho, queria que este vivesse uma mãe. E ela seria esta. Houve o consentimento dos pais e Luciano, o nome do nascituro - foi seu primeiro filho. Veio a ter uma filha mais de dois anos depois. Gilda, seu nome. E só foi esta.

Vida comum entre pessoas de classe média. Lar, escola, estudo, trabalho, fraternidade. Sabiam-se primos, não irmãos. Foi-lhes esclarecido que a mãe de Luciano havia sido imã de Regi e falecera do parto. Do pai não sabiam. Ela se recusara a dizer. Conheciam e aqui, ali, repassavam juntos as fotos das duas irmãs, uma cara em duas pessoas desde crianças. Adultas Rozembergue entre as duas. Muitas fotos dos três sempre juntos na escola, em casa, nos passeios, nas praias.

As pessoas se encontram muitas vezes em ação como em sentimento, o tempo une e separa. Os irmãos de criação sabendo-se primos em sangue, na mesma casa, na mesma escola, para toda parte. Antes que aparecesse namorado a nenhum dos dois descobriram que se namoravam muito de leve, mas perceptivelmente.

Rozembergue, tristemente constrangido, chamou o filho a um particular especialíssimo. Frente a frente, olhos nos olhos, falou-lhe sem rodeios. O assunto era sério demais e fundamente doloroso para ele, não ensejava contorno, delonga. Apertou-lhe fortemente as duas mãos e disse:

- Filho, Gilda é sua irmã de sangue, você é meu filho. Eu engravidei sua mãe antes de me casar com sua tia.

Foi o silêncio de cemitério, dois homens de cabeça baixa chorando silenciosamente. Regi não soube da conversa, senão muitos anos depois. Gilda morreu sem saber. Não se casou.

Luciano levantara-se enquanto o pai chorava silenciosamente. Também silenciosamente saíra. Com a roupa do corpo. E nunca mais. Desapareceu. A prima e os pais choraram. A tia e a prima não entendiam a razão. Suspeitaram de acidente, de crime, de doença, Alienação mental, de tudo sem atinar para nada. O pai de cabeça baixa só fazia chorar, não tinha palavra nenhuma, parecia um leso. Falava consigo mesmo: antes não dissesse, ninguém sabia, sequer suspeitava. Casassem os dois. Que mal haveria? Seria duas vezes avô dos que viessem. O mal está feito. Melhor silenciar a mim mesmo. Afinal o tempo cura o tempo, a dor caleja a dor. A vida haveria de seguir. Seguiu.

Luciano em fase inicial de universidade buscou, em lugar bem distante um seminário. Pediu abrigo e proteção. Foi acolhido. Padre. Longe lugar de sua terra natal. Homem moço. A tentação da carne se diz e eu diria a necessidade fisiológica, a destinação dos animais – crescei a multiplicai. Acabou se envolvendo com uma paroquiana. E a engravidou. Gritou, esbravejou, lamentou a fragilidade. Reflexão sobre reflexão. Decidiu-se a punir-se. Castrou-se. Confessou a ação à jovem, que a recebeu chorando. Passado um tempo acomodou a situação. Casou a jovem mediante um acordo com um jovem pobre e trabalhador que assumiu a situação, inclusive a criança como filho. E vai o tempo engolindo o tempo. Castrado engordou de ficar irreconhecível. Para maior segurança fez uma rápida plástica de feiúra, dois cortes no rosto, simulados como acidente. E conseguiu uma mudança de freguesia para sua terra. Pessoa alguma o reconheceu. Soube que a prima se encontrava doente, em fase terminal. E quis ser presente aos seus dias finais. Razões do coração. Quem não as conhece?

Visitou-a no hospital em hora em que não eram presentes os pais. Entrou no quarto, ajoelhou-se em frente à doente e pediu que esta o acompanhasse nas orações no que sequer foi percebido. Orou chorando copiosamente. Foi preciso que o retirassem. Saiu soluçando.

À hora da missa de encomendação chegou e entrou na capela. Sussurrou ao celebrante, que acolheu o seu pedido. Ajoelhou-se ao lado do caixão defronte ao rosto da falecida e orou alto e em profundo pranto: acolhei, Senhor, na tua glória esta santa, a quem eu tanto quis e faltou-me coragem e decisão para apoiá-la e ser presente a sua vida.

Desmaiou. Um médico presente abriu a bolsa, tirou o estetoscópio e o auscultou. Ergueu-se pasmo e disse:

- O padre está morto.

Todos se aproximam. Rozembergue rapidamente abre alas entre os curiosos, aproxima-se, contempla o rosto desfigurado e dá um grito de horror e desespero.

- Luciano, meu filho!...

Cai sobre o morto e auscultando-o rapidamente diz o médico:

- Também morreu. O que está havendo, gente, quem é esse padre a quem ele diz “meu filho” e chama pelo nome?

Regi se aproximou, olhou os três mortos silenciosamente. Não chorava, tinha feições de demente. E só então entendeu a dura verdade. Pronunciou pausadamente e sem lágrimas:

- Deus, Senhor, tudo acontece pela tua vontade. Sejas, pois bendito pelos séculos dos séculos. Amém.

Chamou de parte um parente a quem pediu que aviasse providências junto à saúde, a igreja e o cemitério no sentido de que se sepultassem os três juntos na mesma hora e na mesma cova com uma simples inscrição, sem indicação dos nomes: Descanso eterno dê-lhes, Senhor.

E silenciosa se retirou. Já não tinha ninguém na vida, salvo parentes remotos e de relacionamento distante. Recolheu-se ainda relativa moça a uma casa social de idosos. Os outros estavam mortos para a vida, ela morreria para o mundo. Trancou-se sem dar notícia a quem quer que fosse

25-01.2012.