Inocência
Tédio patológico.Cheiro de chuva.Um vento forte e doce toca as faces perdidas e vazias dos transeuntes.Mais um dia.Mais um tic-tac dos relógios caros dos homens de terno apressados da rua XV.Para todos é só mais um dia cinzento e provinciano do centro curitibano, para Maria Violeta dos Sinos – Mariazinha ela prefere –, não.Para ela é um dia ainda pior.Todos vêem isso, o medo.Não há como esconder na face travessa e enrubescida da menininha qualquer emoção, exceto por uns olhos gélidos de um azul muito atraente e que, por vezes, revelam sua argúcia.Em certos momentos pode-se perceber um observar lupino e congelante da garota, mas logo ele se esvai em uma risada travessa.Normalmente ela é só mais uma menina pobre que vive no centro, filha de uma prostituta e um rufião e, portanto, muito travessa e mal-educada, embora a ciência universal de sua inteligência seja notória.Hoje ela seria muito mais rentável.
Ali, onde pobre conhece pobre, onde crianças andam ao léu, soltas e entregues aos bel-prazeres do lado mais bestial da humanidade, Mariazinha tem medo. Sua mãe que tem o hábito de sumir por dias e deixar os cinco filhos à sorte, voltaria ainda hoje.E ela ganharia alguns doces.Isso não é algo aprazível.
Sentada na sala, Mariazinha escuta as notícias pelo rádio deplorável do pequeno apartamento.Os irmão brincando aqui e acolá.Um casal transa no corredor e ela ouve os gemidos.Os canos velhos gritam.
– Boa noite Brasil, neste 20 de dezembro de 1968 temos motivo de regozijo! –A voz grave do locutor fascinava a menina.Certa segurança e poder havia nela e Maria a adorava.O homem continua.
– Mesmo ante as intentonas comunistas de derrubar nossa real democracia, o Brasil vai muito bem ante aos outros países!Vejam só, na Inglaterra, mais um caso terrível em Newcastle Upon Tyne! Uma atrocidade foi cometida por uma jovem... – Mariazinha é interrompida em sua sequiosa atenção.Porta que bate, cheiro de álcool e menstruação.Mamãe chegou.
Ela ainda ouve um resquício da notícia antes que sua mãe inicie a surra desmedida e descabida.São um termos que ela jamais saberá o significado ou a razão.”Psicopatia” entra em seus ouvidos ao mesmo tempo que um tapa seco de sua mãe.Ela ainda ouve um nome antes do próximo soco,”Brian Howe”.”Deve ser algo em inglês”, ela pensa antes que sua mãe pegue o pé-de-cabra.Agora não pensa em mais nada.Só desmaia.
Acorda estatelada, dolorida.A voz estridente da mãe berra:
– Vamos, vagabunda.Logo vem um amigo da mamãe e você precisa estar pronta.Quer seus doces, não? – Sem demonstrar qualquer emoção ou dor ela levanta.Os olhos de um tom monstruoso, intocável.
Não adianta se arrumar, ela sabe.Logo estará bagunçada.Ademais, o cheiro da mãe é tão insuportável que a cada levantar da mesma se sente o cheiro do sangue menstrual putrefato, logo ninguém perceberá se ela estiver suja.
Batidas na porta, entra um senhor gordo, calvo e com suor formando círculos em suas axilas.Um quê de funcionário público, ele tem.
– Ora, mais um escravinho para mim hoje... – Diz a mãe, interpretando o personagem de sempre.
–Você é a Bete? – Uma voz rouca, podre, vazia, asquerosa e patética.Mariazinha se enoja com tamanha pateticidade.
– Não dirija a palavra a mim, escravo!Não sem que eu permita! – Ele já está dentro do apartamento, derrubado ao chão.
– Então você aqui para ser dominado, não é?Sabe que terá de pagar... – Sempre os mesmos dizeres aos clientes.As pernas abertas sobre o homem.Ele mal consegue falar.Mariazinha, sentada ao fundo, quase sente pena dele.O cheiro deve ser de matar.
– Sim, cof...Sim, eu vim...cof.
– Ótimo.Então, já que tem dinheiro, terá o prazer de conhecer o que me faz tão famosa, procurada e cara. – Um leve balançar de cabeça da mãe em direção a filha.Passos leves e um agarrão forte.Mariazinha é jogada ao lado do homem e deita-se com medo dos possíveis pisões.
– Você não é meu único escravo aqui hoje.Essa é minha filha e ela participará dos nossos joguinhos.Tem só onze anos e é muito, muito safada.Se me pagar trezentos reais a mais, serei bem malvada com os dois.
Eles sempre aceitam, afinal Mariazinha com seus distintos olhos azuis era muito atraente.Inclusive muitos dos “clientes” que aceitavam a proposta eram pais de amiguinhos dela e, antes mesmo de saber de sua disponibilidade, haviam escorregado a mão para sua calcinha.
– Tudo ..cof...cof..bem.
– Ótimo, comecemos.
Uma dor terrível.Algo se rasga, novamente.Gosto de menstruação em sua boca.Uma barriga flácida roçando contra suas costas.Duas línguas ásperas em seu corpo.Um cheiro acre e algo gosmento em seus orifícios, depois descendo por sua garganta.Lágrimas escorrendo.Raiva.Muita raiva.Mariazinha sorri quando um pacote de doces é deixado ao lado de seu corpo violado e machucado.Não tão machucado quanto sua alma.