Cordão de Ouro

“Mensurável e incontestável tempo. Tempo que não me cabe medir ou definir, simplesmente dar tempo. Tempo que passa e não volta, tempo que se faz em minha memória.”

Era tempo de ser criança, era tempo de brincar, correr, ralar os joelhos, assistir desenhos, era tempo de sonhar, e ser feliz. Tempo que não existiu para Aninha. Dentro daquele hospital, naquele quarto branco e sem vida sua mãe tentava ajeitá-lo ao parecer de sua casa, tentava tornar pessoal aquilo que era tão impessoal. Simplesmente tentava, mas não conseguia. Não era sua casa, não era seu quarto cheio de bonecas na estante, não tinha seu cachorro latindo para incomodar, não era seu lar. Para Aninha era onde a cada amanhecer ela sonhava em estar o mais longe dali.

Seu coraçãozinho não batia regulado, na verdade, muito pouco batia. Aqueles canudinhos que a enfermeira ia checar toda manhã, eram na verdade o que até então a faziam estar sorrindo. Seus pais já não mais se lamentavam por Aninha não ter uma vida comum, lamentavam-se por verem sua filha desfalecer-se aos poucos e, como se estivessem de mãos atadas, não poder fazer nada. Era como se a vida de Aninha fosse um cordão de ouro e alguém tentasse forçá-lo até ele se romper, ao forçá-lo, esse alguém fazia Aninha sentir dores intermináveis, e a cada puxão o cordão chegava mais perto da hora de se separar.

Miguel via sua filha sofrer, incapaz de fazer qualquer coisa que pudesse ajudá-la. Aninha sempre dizia a ele: “Papai, eu sou forte. Logo, logo, vou sair daqui pra gente brincar no balanço da jabuticabeira.” Frase que fazia os olhos cansados de um pai se marejarem de lágrimas. Lágrimas que naquele quarto rolavam infinitamente, como se aquilo aliviasse a dor de ver um anjo partir da terra aos poucos.

Esse pai um dia se cansou. Cansou-se de ver Aninha sofrer, chorar, se cansou de vê-la morrer. Decidiu por ela morrer, deu seu coração a Aninha. A menina, para sempre, guardaria em seu ser um pedaço daquele heroi, salvador, daquele pai. A mãe concordou, já que para eles aquela parecia a única saída.

A cirurgia realizou-se com sucesso. Em algumas horas Miguel estava morto e Aninha pronta para viver. Aquilo confortava a perda do marido para a mãe que já não tinha mais disposição para ajoelhar-se e rezar. Quando Aninha pode voltar para o quarto, foi recebida pela mãe que os olhos choravam e os lábios sorriam.

Depois de alguns dias, Aninha estava pronta para receber alta e voltar para onde ela sempre chamou de casa. Mas alguém voltou a forçar o cordão de ouro que fazia a menina sorrir. Complicações se deram e o coração novo passou a ter uma melodia descompassada. A esperança da mãe em levar a filha pra casa foi tomada pela simples esperança em vê-la viva.

Enquanto os profissionais tentavam remendar o cordão de ouro, Aninha disse à mãe, esboçando um pequeno e singelo sorriso: “Mamãe, eu vou pra junto do papai, vou devolver o coração dele, pra gente poder brincar no balanço...” Seus olhos se fecharam, sua boca se calou, seu coração se aquietou. O cordão de ouro se rompeu.

@sabrinacarol_

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Sabrina Silva
Enviado por Sabrina Silva em 12/06/2011
Reeditado em 06/08/2011
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