Seguindo em frente
Já é quase meia-noite.
O frio e o vento que me assolam não conseguem de maneira alguma tirar o cheiro podre dessa cidade de perto de mim. Eu já devia estar acostumado, pois nasci aqui. Mas acho que jamais me sentirei à vontade morando no lixo, porque é isso que essa cidade é. Um grande e imenso lixo fedorento.
Alguém passou perto de mim alguns minutos antes, um drogado qualquer. Ele olhou nos meus olhos e perguntou numa voz não humana:
"O que cê ta olhano?"
Eu continuei encarando e ele voltou a pegar o rumo dele.
Como essas pessoas conseguem ser tão insignificantes? Pra mim elas não passam de seres rastejantes e sinto pena e nojo de ser um deles.
Eu não devo generalizar, tenho que ressaltar algumas pessoas. Por exemplo: o Seu Jerônimo, amigo do meu pai, ele era um bom homem. Teve um fim terrível. É isso que as pessoas boas tem, fins terríveis. Talvez por isso eu não sou uma pessoa boa.
De todos esses drogados, traficantes e assassinos... Eu sou o pior.
Mas não precisam temer, porque essa noite eu enfrentarei meu destino. E, tomem nota, não estou parado aqui neste beco para me encontrar com a fada madrinha!
Se eu estou com medo?
Tente encarar a morte de frente sem sentir medo. Você não vai conseguir!
Quero ver meu pai de novo, minha mãe e meu irmão. O que estou pronto para fazer pode ser chamado de suicídio, mas continuar vivendo em um mundo podre como este não é pior?
Droga! Tem sempre que ser por uma garota não é? Se eu dissesse que o que estou fazendo aqui não é por uma garota eu estaria mentindo. Ela foi levada há alguns dias e não aguento pensar no que eles podem estar fazendo com ela.
Vai passando mais um alguém, ele olha nos meus olhos. Eu reparo no quanto os dele estão vermelhos.
“Ta quereno alguma coisa seu otário?” ele diz me encarando, eu continuo olhando pra ele. “Perguntei se ta quereno alguma coisa!”
Não quero responder, não quero mais falar com nenhum deles. São todos uns estúpidos, uns ignorantes cheios de raiva em suas almas prontos para destruir qualquer coisa boa que surja em suas vidas.
“Não!” respondo tentando não arrumar briga.
Eu poderia ter acabado com ele, ter matado ele a sangue frio. Mas prometi à alguém não faria mais.
Vocês devem estar loucos para saber qual é o nome dela. Mas não vou dizer. Ela não iria gostar de tanta publicidade.
Eles só a pegaram por minha causa, eu estava usando drogas uns meses atrás. Usava muito todos os dias. Eu entrei no tratamento e foi onde eu a conheci.
O quanto eu devo à eles? Provavelmente uns poucos milhões. Mas nada que a minha morte não possa pagar. Se for preciso matar para salvá-la eu matarei, quebrarei minha promessa, mas irei salvá-la!
Como eu entrei nesse mundo é que eu me pergunto. Até o segundo grau eu era um garoto exemplar, tirava boas notas, tinha boa fama apesar de ser invisível nas ruas e no colégio, era amado por meus pais e tinha amigos.
Pensem que foi porque mataram meus pais, ou um amigo ou qualquer pessoa próxima a mim. Pensem o que quiserem, mas a verdade é que não foi por nenhuma dessas coisas.
Não quero ficar contando sobre minha vida ou o quanto ela era boa antes de entrar nesse mundo. Antes de entrar no inferno.
Faltam poucos minutos pra meia-noite, já é hora.
Talvez eu consiga barganhar a vida dela pela minha, talvez eu consiga fazer algo bom da vida.
Um magnífico último ato, um Gran Finale digno de mestre.