A Carta

Olá.

Não sei bem como devo começar esta carta. Não sei que palavras escolher ou que assunto mencionar. É estranho pensar durante todo o dia sobre todas as coisas que eu quero trasmitir até você e, ainda assim, me ver agora incapaz de por tais ideias no papel.

Talvez eu deva começar com o básico. Perguntar como você está e dizer-lhe também como estou.

Bem, como está? Como tem andado? Suponho que agora todos os seus problemas estejam resolvidos, não? Fico ligeiramente feliz em saber disso.

Não, seria hipocrisia dizer que fico feliz pelo seu alívio. Me desculpe a sinceridade, mas eu não posso simplesmente lhe mentir, dizendo que estou bem e aceitando o que aconteceu. A verdade é que o pensamento de que você está agora muito melhor do que antes é, para mim, uma espécie de esperança. É com esta ideia que eu tento achar um caminho por entre a escuridão que se instalou em meu peito. Durante a noite, quando já não tenho mais para onde correr, afim de me esconder do turbilhão de imagens desesperadoras que me açoitam, é neste pensamento que eu tento me agarrar. É nele que eu foco todas as minhas energias, concentrando-me completamente, tentando blindar-me do sofrimento que aguarda em silêncio para me tomar de assalto.

Desculpe-me por lhe trasmitir tanta infelicidade nestas palavras. Como eu disse, não sei bem como deveria conversar com você, ou o que deveria escrever-lhe. Acho que consigo apenas lhe dizer aquilo de que está cheio o meu coração. E, no momento em que você partiu, levou de mim toda a luz, deixando espaço livre e desprotegido para a escuridão, juntamente com toda a sorte de sentimentos que ela engloba.

Mas, excluíndo-se este problema, acredito que tenho andado muito bem. O médico disse que não ficarei com sequelas devido ao acidente e o pessoal do seguro já me entregou o carro novo. Sabe, fico ligeiramente aliviado por o novo veículo não se parecer em nada com o antigo. Principalmente nos detalhes. A cor não é a mesma. Não é aquela que você me implorou para escolher. O interior do carro não tem marca alguma. Nem a mancha de esmalte que você deixou no volante naquela vez em que tentou dirigir com as unhas recém pintadas. Aliás, até hoje não entendo como você conseguiu fazer aquela mancha. Quer dizer, uma pessoa normal segura o volante com a palma das mãos. Como você conseguiu tocar a unha no mesmo? Acho que é algo que só você conseguiria.

Os bancos também, têm aquele cheiro de "novo", sabe? Muito diferente do cheiro adocicado do perfume que você derrubou no estofamento do assento do antigo carro. Engraçado o modo como você sempre tentava fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Por que não passar o perfume e então ligar o carro? Coisas sobre você que eu jamais entenderei. Como você sempre tentava dar o nó na minha gravata e me beijar ao mesmo tempo. Ou como mexia o café e passava geléia no pão ao mesmo tempo. Quantas vezes te vi escovar os dentes enquanto se maquiava. Parece que para ti, o tempo era mais curto do que para o resto do mundo. Será que, em todas essas vezes, o que você queria era me dizer que, de fato, o seu tempo era menor? Será que desde aquele tempo você já sabia que não ficaria comigo até o fim?

Eu sei que é injusto de minha parte dizer isso. Do seu ponto de vista, você esteve comigo até o momento derradeiro. O médico disse que pode ter sido a minha imaginação e, ninguém além de nós dois poderia confirmar o que aconteceu no interior do nosso carro enquanto éramos abalroados pelo jovem bêbado que vinha no sentido contrário, mas eu tenho plena certeza de que, enquanto nosso carro capotava pelo concreto e se desfazia em pedaços de metal retorcido, você segurava a minha mão.

Aliás, talvez você queira saber, ou talvez já saiba. O rapaz do outro carro sobreviveu. E sobreviveu muito bem, devo dizer. Ele saiu praticamente ileso do acidente, apenas teve alguns arranhões pelo corpo, porém nada de mais grave. Irônico isso, não? Ele descuidou-se de sua segurança por um momento e quem teve de pagar o preço fomos nós. Nossos amigos me disseram que ele é um monstro. Que o que ele fez não tem perdão. Mas sabe, eu fico pensando no que você diria. Você sempre tinha aquele tom maternal quando conversavamos sobre essas coisas, não? Sobre perdoar, sobre dar uma segunda chance. Eu acho que nunca havia sentido o que você sentia até agora. Talvez seja simplesmente por eu estar ligeiramente abalado, mas eu sinto compaixão pelo rapaz. Pois ele talvez não tenha de pagar criminalmente pelo que fez. E com certeza não pagou com nenhuma perda significativa, algo que vá muito além dos bens materiais. Mas ele perdeu, no seu inconsciente, a inocência de quem não pode se perdoar. Eu vi nos olhos dele. Mesmo depois de eu ter dito que perdoava-o pelo acontecido, ele ainda tinha no olhar a expressão de tormento interior. Ele jamais vai conseguir suportar o fato de ter causado tamanha dor para alguém que não ele, simplesmente por ter sido tão irresponsável. Ele nunca conseguirá aceitar o fato de que o seu erro é irreparável. Por essa razão eu senti pena dele. Não tanta quanto eu sinto de mim, mas ainda assim, o suficiente para me fazer não sentir ódio dele.

Você deve estar ligeiramente espantada, não? Afinal de contas, ver a mim, o maior rancoroso de todos os tempos, perdoando alguém assim, tão facilmente, deve ser algo bastante incomum. Eu entendo o seu espanto, mas acho válido que eu justifique. Eu sinto como se já não houvesse razão para sentir. Não só o ódio e o rancor, mas qualquer outra coisa. Só o que eu consigo aceitar em minha existência e minha alma, atualmente, é a sensação de injustiça. Por que, afinal de contas, quem mais pagou, nesta história toda, fui eu. O jovem perdeu a inocência, talvez. Você perdeu a sua vida, o que é de valor inestimável. O seguro perdeu algum dinheiro, seus parentes perderam um ente querido. Eu entendo tudo isso. Mas e quanto a mim? Eu perdi a minha razão de viver, perdi uma parte significativa do que significava ser "eu".

Você entende, não é? O "eu" que existe hoje, o "eu" que eu era por sua causa, este está danificado para sempre. Quando você chegou na minha vida, eu era completamente diferente. Não para pior, ou para melhor. Não assim. Apenas diferente. Era outra pessoa, com outras prioridades, outros gostos. Mas então, você apareceu. Você chegou de mansinho, pé por pé e, aos poucos, quase que desinteressadamente, foi tomando conta de mim. Não como uma dominadora, não por imposição. Você foi merecendo o seu lugar. Foi se aproximando devagar, ganhando a minha confiança, me conquistando aos poucos. E então se mudou para o meu coração e começou a reformá-lo. Lenta e gradativamente, para não correr o risco de danificar as fundações. Você me mudou sem que eu notasse. Fez de mim uma pessoa diferente, baseada no que era a minha vida com você. Eu mudei, imagino que você também mudou. Nossas vidas se interligaram, se uniram e já não era mais duas. Nossa existência era uma só, visto que eu não me imaginava sem você. E agora, quando todo o meu ser está assim, pronto e alicerçado na nossa realidade, você é tirada de mim. Tiraram o molde do meu ser e agora eu começo a desmoronar sobre mim, as coisas ruindo sem que eu possa controlá-las. É difícil viver hoje sem sentir o choque da sua ausência.

Como por exemplo, na noite em que eu saí do hospital. Enquanto lá no leito do meu quarto de repouso, as coisas pareciam distantes, apenas um sonho ruim do qual eu procurava me isolar. Mas quando eu voltei para o nosso apartamento e tentei dormir no nosso quarto... Você não pode imaginar a sensação...

Quando eu deitei na cama, com a luz apagada, o silêncio me pareceu opressor. Pois aquilo era anormal. Eu fiquei ali parado, prendendo a respiração sem mover um músculo, esperando, instintivamente, por algum ruído seu, algum sinal de que eu não estava sozinho naquela cama. E nada. E a cada segundo que passava, a sua ausência ia ficando mais acentuada, mais evidente. E a opressão em meu peito ia aumentando. O silêncio declarava em alto e bom tom que você não estava ali. Eu não consegui dormir no quarto naquele dia. Passei a noite na sala, jogado no sofá, com a televisão ligada e com o volume bastante alto. Só consegui dormir bastante tarde da noite, quando o sono nublou por completo a minha mente e tornou possível que eu me desligasse do que sentia.

Na manhã seguinte, quando acordei, desci até o mercadinho próximo ao nosso prédio, a fim de comprar algo para o café da manhã. Em determinado momento, quando cheguei ao balcão da padaria, pedi instintivamente por cinco pães franceses, enquanto calculava mentalmente como dividiriamos. Eu costumo comer dois e meio, às vezes três. Você raramente come mais de um, o que nos deixaria com um pão de reserva, para o caso de algum de nós estar com uma fome exacerbada. E foi só depois de ter pego os pães, quando estava pagando a conta, foi que eu lembrei que não havia porquê comprar pães para você. Sabe, é incrível o quão dolorosos são estes pequenos detalhes, durante o dia. Cada coisa ínfima do dia-a-dia que passou a ser diferente ou sem sentido, com a sua ausência, me causa uma comoção. Acho que são estes detalhes que fazem com que eu sinta e entenda, definitivamente, que você se foi. O silêncio na cama, o fartura inadvertida na mesa do café, a minha toalha molhada sobre a cama e ninguém reclamando ou a televisão no canal de esportes durante a hora da sua novela favorita. Cada mania sua a qual eu me adaptei e que agora já não tem mais influência, cada uma dessas coisas me faz sentir a solidão. E me marca, me machuca...

Você deve querer saber se eu pretendo ir adiante, certo? Não só você, mas muitas pessoas me perguntam isso. Eu sei que já faz um bocado de tempo, que as coisas já se assentaram, que eu sou provavelmente a única pessoa que ainda convive com você diariamente, ou, para falar a verdade, sente a sua falta a cada instante. Mas mesmo assim, esta questão não se aplica para mim. Pelo menos não agora.

A ideia de te esquecer, de te superar, me soa ridícula. Como eu posso fazer algo desse tipo, sendo que você foi a parte mais importante da minha vida por tanto tempo? As pessoas querem que eu simplesmente abdique de ser quem eu sou e me transforme em alguém diferente? Como se isso fosse a solução para a minha tristeza?

Eu lhe digo o porquê de não querer te esquecer: O jeito como eu sou hoje, o jeito como você me fez, é algo do qual eu gosto um bocado. A minha versão escrita, dirigida e produzida por ti, é excelente, do meu ponto de vista. E eu não quero abandonar isto. Por mais que doa, por mais que sangre, por mais que se faça sentir, a cicatriz que a sua saída deixou, é parte do ser que você ajudou a criar. E eu gosto disto. Gosto ligeiramente da dor, pois é a minha ligação contigo.

Eu não sou mórbido ou masoquista, a fim de querer continuar assim para sempre. Eu sei que em determinado momento, eu vou ter que tocar a vida. E eu pretendo fazer isto. Mas não deixando você para trás. Assim como, tempos atrás, eu me moldei para me adaptar a sua presença, hoje eu me moldarei para me adaptar a sua ausência, mas sem mudar a minha essência e sem destoar da obra que você vinha me ajudando a criar.

Enfim, eu não quero te encher de palavras melosas e tristes. Não é assim que você gostaria de me ver, certo? Eu não menti pra você sobre como me sinto ou o que pretendo da vida. E nem o farei. Eu vou seguir adiante, da melhor maneira que puder. Talvez não com um sorriso no rosto, pois não sou tão bom para fingir sentimentos. Talvez não com despreocupação ou suavidade, como outrora eu fizera. Não posso mais agir assim, pelo menos não por enquanto. Mas você pode ter certeza de que eu vou continuar. Eu não vou parar, não vou desistir, pois eu sei que esta seria a maior ofensa que eu poderia fazer a você. E não só por você. É por mim também. A minha vida voltou a pertencer só a mim, a ser guiada só pela minha vontade. O que de melhor posso fazer agora é continuar andando.

Eu vou sentir a sua falta. E vou sentir saudades absurdas. E vou sofrer para me acostumar ao fato de você não estar aqui. Mas vou continuar andando. Afinal de contas, quando as nossas vidas passaram pela triagem, a minha foi escolhida para ficar, certo? Não vou desmerecer quem se foi. Se eu vivi naquele dia, foi porquê é isto que tenho de fazer. Viver. E eu o farei.

Esta carta, mais do que tudo, é para lhe dizer isto: Eu vou continuar. Por mais que eu pense que seria melhor com você por perto, eu vou continuar sem você. Pra que no futuro, quando eu te encontrar de novo, você possa sorrir pra mim e tornar a dizer: "Nunca desistiu, não é, seu cabeça-dura?" Era por isso que você gostava de mim e é isso que eu vou manter. Serei seu, mesmo sem você. Pode acreditar.