Inumano

Não sozinho ou desamparado, apenas isolado, como eu sempre gostara. Andava, andava sim, não como gostava à noite, nas ruas vazias, andava desta vez pela avenida, movimentada, no dia com o sol rachando. Os transeuntes iam e vinham em suas vidas agitadas, corridas e transtornadas. Isso muito me incomodava, me punia, me irritava. Tinha que ser justo hoje? Tinha que ser justo agora? Cada passo meu, em meio aos esbarrões dos pedestres, era um reencontro com o meu passado recente. Acordei hoje, como sempre acordaria em um dia comum, mas com um diferencial, uma peculiaridade. Além de ser um dia muito quente e acordar muito suado, acordei também com a minha insatisfação aflorada pelo dia do meu aniversário. Nunca gostei de aniversário, principalmente o meu. Não estava bom, eu sabia disso. Levantei, arranquei a blusa encharcada de suor e fui tomar um banho. Passando pelo corredor, em direção ao banheiro, cruzei com minha irmã, que sequer bom dia me deu. Normal. Ela sempre foi assim, mas daí pensei “é o meu aniversário, poxa”, e quem eu tentava enganar? Nem eu gostava daquilo, melhor mesmo que ela não me incomodasse. Bom, entrei debaixo do chuveiro, frio mesmo, procurando não me demorar muito. Sabia que o dia ia ser longo, queria ir para o mais longe que fosse possível. Já no meu quarto, eu vesti meu jeans surrado e uma camiseta qualquer, calcei meus tênis e saí do quarto. Já me preparando para sair vi minha mãe na cozinha preparando o café que ela tanta gostava de tomar de manhã cedo. Parei ali por um tempo e fiquei olhando-a em sua arte de preparar o melhor café, que até mesmo quem não gosta, assim como eu, iria apreciar. Saí sem fazer ruído, não levei dinheiro e nem celular. Queria, penso eu agora, sofrer o máximo que eu pudesse. Uma forma de punição. Andei a esmo, sem o menor destino, apenas queria andar. E assim o fiz. Andei e agora ando ainda. Vim pensando desde casa o que seria melhor pra um cara como eu, que sempre detestou tudo numa sociedade, ganhar de presente de aniversário. Eu detestava a sociedade de uma forma especial, de um jeito só meu, não me revoltava e fazia coisas tolas como me drogar e brigar, apenas desprezava qualquer tipo de contato com quem quer que fosse. Isolava-me, assim como agora, isolado e incomunicável com o mundo. Sabe, não queria o mal das pessoas, quer dizer, de algumas eu queria sim, mas no geral eu não queria. Só queria paz e sossego. Pois então, agora estou aqui sem rumo, sem direção, andando em uma linha reta que não sei onde vai dar, quase chegando ao centro de minha cidade. Uma grande cidade, demonstração de uma grande falha social, ao menos era assim que eu pensava. Olhei para um relógio, destes da prefeitura, marcava treze horas em ponto. Pois neste exato momento, não é que eu vejo algo que muito me chama a atenção, algo com que em primeira instância eu pensei, “só pode ser brincadeira”. Parei estático e fiquei olhando para aquilo. Parei de me achar grande ou qualquer coisa que alguém se ache quando vê o que eu vi e pensei comigo, “mera coincidência”. Já ia recomeçar a andar quando de repente eu li o que estava faltando para me deixar catatônico. Fiquei ali parado, estagnado, olhando para aquela placa que anunciava: “seu dia, seu aniversário, sua vida mudando, agora e aqui. Entre.” Até aí tudo bem, sem nada de mais, podia estar escrito em qualquer lugar que quer uma boa propaganda para cativar os tolos, mas o diferencial era o meu nome completo escrito na linha de baixo me chamando para entrar. Fiquei muito incrédulo, claro, inicialmente, mas quando reli a placa, para ter certeza de que tinha lido corretamente, eis que, ao terminar de ler exatamente tudo o que eu já tinha lido, vi acrescentado mais uma frase ao anuncio: “sua grande chance de mudar tudo aquilo que você odeia de uma vez por todas”. Eu sabia que aquilo não estava escrito ali naquele instante, sabia que aquilo estava escrito pintado e não em uma tela eletrônica que podia mudar o tempo todo. Fiquei embasbacado, desacreditado, não podia ser verdade. Olhei desconcertado para os lados, procurando nos rostos a minha volta, aquém que estivesse olhando para aquilo como eu estava. Ninguém se importava com aquilo que eu estava vendo, ao menos eu achava que eu estava vendo algo assim. Depois de alguns segundos de susto passei a sentir uma raiva, pensei “eles estão brincando comigo. Alguém quer me pregar uma no dia do meu aniversário”. Com este pensamento na cabeça, espremi os punhos e já bastante irado, decidi por entrar naquela porta no meio de tantas outras lojas. Olhei novamente para a placa bem do lado esquerdo da porta, esta era pequena em largura, mas grande como as outras portas de lojas. O lugar era um tanto exótico e muito estranho, pra começar não tinha ninguém querendo entrar no lugar, não havia uma vitrine, só aquela placa pintada escorada num dos cantos da porta. Pisei no degrau que a separava da calçada, senti o cheiro de naftalina no ar, adocicado talvez, como o de incenso queimando. Olhei para o fundo da loja, nada lá, olhei para os lados e só via as paredes lisas e sem enfeites, de um amarelo desbotado. Comecei a caminhar para o seu interior e nada percebia até que, mais ao fim da entrada, perto de uma curva para a direita, eu vi uma cortina que separava a frente da loja do fundo desta. Antes de transpassá-la porém, percebi que não estava sentindo mais nada, exceto apreensão. Olhei para a minha esquerda e pude ler uma placa com os dizeres “não demore, entre logo” em seguida uma seta apontando para a tal cortina. Respirei uma última vez profundamente e passei pelas cortinas puxando-as para os lados. Assustei novamente. A sala era mais escura do que eu imaginava, sua única iluminação era um abajur, destes com estrelinhas abertas em sua cobertura, que espalhava uma luz fraca. Pude ver de imediato, o que mais me deixou perturbado, um homem comum e sem maiores detalhes, exceto uma barba mal aparada. Ele vestia uma roupa leve em tons escuros, me encarava sem expressão por trás de uma mesa onde estava o abajur à sua direita, perto da parede. A mesa coberta com um pano verde escuro, muito similar a estes usados em mesa de jogos de baralho, aveludado. Por sobre ela nada além das mãos do homem, cruzadas, relaxadas. Não sabia o que pensar ou dizer, devo ter ficado parado ali olhando-o, não diretamente nos olhos, estava envergonhado acho, por uns três minutos. Por fim o estranho me disse:

- Sente-se por favor. – sua voz era rouca e forte, grave também. O que mais me incomodou foi o fato de eu não ter visto cadeira nenhuma à minha frente antes de ele ter estendido a mão apontando para ela.

Sentei-me puxando a cadeira, destas de ferro, de abrir e fechar, para perto da mesa. Senti-me hipnotizado pelo momento. Ri com o canto da boca, talvez uma defesa pra timidez, o fato era que eu fiquei me perguntando o que é que eu estava fazendo lá.

- Você deve estar se perguntando o que é que está fazendo aqui, não? – disse ele como que prevendo o que eu pensava.

Fiquei sem resposta, aturdido com a pergunta, mas ele prosseguiu por mim:

- É chato ser aniversariante e estar sempre insatisfeito, não? – meneei a cabeça em sinal de negativa, sem contudo dizer uma só palavra. Ele prosseguiu – Sua revolta não é diferente de muitas outras, a sociedade e o mundo estão mesmo perdidos, concordo, mas, contudo, não vejo muita gente tentando de fato acabar com isso. Pode ser que o que falte aqui seja um pouco de iniciativa, coisa que eu não acredito, mas o interessante é pensar: e se alguém pudesse mudar tudo, absolutamente tudo? Se tivesse poder para tudo mudar, essa pessoa de fato o faria?

Ele parou de falar e eu parei de olhá-lo nos olhos. Estava absorto em pensamentos, não pensava no que ele me dizia, nem deixava de fazê-lo, só estranhava todos aqueles acontecimentos, ali, num único dia, num único momento. Porém, não parei para questionar-me do absurdo daquilo.

- Então – começou ele – você aceita?

Não disse palavras, nem respondi com gestos, apenas fiquei parado esperando ele continuar como se ele tivesse apenas me feito uma pergunta redundante, mas não foi como eu imaginei.

- Então, eu disse, você aceita?

- O que? C-co-como? – gaguejei tentando recuperar o raciocínio – Aceita o que?

- Não é o que você mais deseja?

- Como assim? – comecei a ficar revoltado – do que você está falando?

- Vou esclarecer pra sua mente desatenta – disse ele me repreendendo – eu estou lhe oferecendo a chance de mudar toda a sua vida, tudo a sua volta, todas estas coisas que você odeia. Transformar o mundo em algo novo e melhor. E aí, você quer?

Estava atento, porém não via coerência no que ele me dizia. Não me deu tempo para pensar em mais nada e voltou a perguntar:

- Quer ou não quer? – fez uma cara de entediado.

- E como é que eu vou fazer isso?

- Isso faz parte do seu problema, o meu é dar-lhe condições para tal – e antes que eu pudesse perguntar outra coisa e completou repetitivamente – vai aceitar ou não?

Achei aquilo engraçado e respondi um “sim” sem pretensão alguma, só para ver o que o tal iria dizer. Pra minha surpresa ele se levantou de uma só vez, me estendeu a destra, e ficou com a mão a esperar a minha para um cumprimento. Sorri sem graça e me levantei já apertando-lhe a mão.

- Parabéns, faça bom uso do que lhe foi dado – disse ele sacudindo energicamente a minha mão.

- Como assim? O que é que você está me dando? – já ia lhe questionar sobre alguma brincadeirinha sem graça, mas ele me interrompeu.

- Lembre-se, você só terá as facilidades de já estar. Como aprender sobre suas capacidades vai depender do seu empenho e nada mais – disse sem soltar a minha mão e continuou – Todos os seres podem ser o que quiserem, é natural de suas existências, mas não o fazem por duvidarem cegamente de suas capacidades. Seus bloqueios foram retirados do seu cérebro, da sua mente, sua vontade está livre. Basta agir, com sabedoria é claro. Boa sorte – desejou ele soltando minha mão. Em seguida apontou para a saída e esperou minha reação com um sorriso no rosto.

Fiquei sem saber o que dizer. Confesso que estava para começar a me revoltar, mas me contive subitamente, sentia uma paz e uma calma momentâneas que me fizeram querer sair dali. Acenei um adeus e saí sem olhar para trás. Quando dei por mim já estava na calçada, no caos do dia a dia. Cocei a cabeça e olhei para trás e onde havia uma porta, de onde eu tinha saído, só restava um pôster colado em uma parede bem sólida. Espantei-me com a parede sem a porta, era muita maluquice. Ainda pensei um pouco antes de andar até a parede e dar alguns tapinhas na solidez de sua consistência, só então reparei que o que estava escrito no pôster desbotado e meio rasgado: “Aja. Boa prática.”

Continua...

Pedro HD Delavia
Enviado por Pedro HD Delavia em 11/07/2010
Código do texto: T2370676
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