Maria (do Zé)

Chamava-se apenas Maria do Zé, ou era como a vizinhança a conhecia. O fato é que não era apenas Maria, o que seria comum, mas Maria do Zé, por ser mais específico e acentuar sua verdadeira condição. Era uma mulher de certa idade, uns 42, cabelos longos e recatados, limitados à cintura como manda a boa moral, seus olhos, um tanto cansados pelas intempéries da vida. Possuía um rosto branco, macilento, como se há muito não visse sol. Nos últimos anos os males tomaram seu corpo, desceram da cabeça e do peito para os membros inferiores, sua face era tal qual uma máscara mortuária, se falava, falava do próprio túmulo .

Maria do Zé sabia do ofício de rezar, era costume seu ir à igreja aos sábados, garantir a salvação dela e do marido, conversar com as amigas e ir para casa. Era somente esse seu divertimento, não via novelas, eram indecentes, dizia o marido. Em casa, quando lavava louça, brincava com a água, apertava e encharcava a esponja, desenhava no fundo negro das panelas, servia ao marido. Aos sábados ia à missa, passava pela rua, as curvas lascivas visíveis sob o sudário, o livro sob o braço. Passava apenas pela avenida principal, lugar de mulher de família, de gente recatada, diziam. Maria do Zé não andava por bibocas, pela surdina da noite, fora de seu caminho habitual. Era com medo que ela chegava a casa, aquecia a cama do marido, preparava a roupa do dia seguinte e preparava uma faxina.

Com o pescoço apoiado no cabo da vassoura Maria varria, varria de forma ritmada, as ancas balançando no mesmo tom, os sapatos arrastando o chão, o esfregão segurado firme entre as coxas, e em seguida o banho, que a casa ainda estava suja. Depois esperava o marido para dormir. Foi assim todo o sábado e todos depois, exceto um.

O vestido era escarlate, devido a festividades ecumênicas, mas apenas a cor perdia em discrição, pois era uma vestimenta íntegra, comportada e condizente com o momento. E foi com esse vestido que, após a missa, Maria do Zé decidiu andar por caminhos diferentes. Não julgou que houvesse mal no que fazia e já na primeira esquina do desvio rogou um Pai Nosso pelo que viu. Lá estava o que diziam ser o antro do diabo: uma boate, de nome Baco em letras brilhantes, que agora lançava feixes de luz das mais variadas cores em todas as direções. Emitia um som rápido e envolvente, e Maria do Zé sentia isso, o cheiro das essências mundanas, e era como se os holofotes fossem colossais braços de luz que a envolviam e tentavam puxa-la para dentro das portas que agora emanavam fumaça.

Tentou resistir, era Maria do Zé, não podia se esquecer disso, e aquilo era do diabo, uma tentação. Tentou dominar-se, lembrou-se das censuras do padre aos prazeres libertinos e aos poucos, como que esquecendo que possuía um corpo, foi se controlando. Após construir um edifício moral em sua cabeça, Maria do Zé decidiu deixar aquele lugar, voltar para a rua principal, de onde não devia ter saído, e tomar o caminho de casa. Virou-se. E no virar sentiu um toque no obro, um toque divino, esperado, salvador. Maria estava salva. Voltou-se para o desconhecido e não tinha medo, era um homem, não belo nem feio, não alto nem baixo, era um homem de feições medianas, morno apenas, um homem. Maria do Zé sabia disso. Maria queria isso.

Ele a conduziu para dentro, finalmente o que Maria desejava e agora incumbia a decisão a um estranho, ela se lavava da culpa de consumar tal desejo, embora não fosse obrigada a isso. Quando entrou, Maria viu a névoa, o som era místico, indecifrável, frenético, até dionisíaco. Pessoas à deriva, corpos suados, colados, copos à mão, bebidas, luzes e gritos, mais gritos que luzes. Depois as mãos, o contato tímido, o afoito, o constante, o anonimato que a situação garantia a todos os atos.

E o fim foi rápido, não havia amanhecido, mas as luzes já não piscavam. A claridade era suficiente para ver Maria do Zé caída no chão, fluidos e pêlos alheios no cabelo e nuca, o vestido dobrado sob as pernas, o rosto colado no chão limoso. Mais tarde foi possível ver Maria saindo pela porta da frente, seu vestido escarlate esvoaçando nas coxas, seu corpo tão imaculado que nem com maior perícia seria possível detectar resquício que fosse da noite que passou.

J Fernandes
Enviado por J Fernandes em 17/02/2010
Reeditado em 22/02/2010
Código do texto: T2091486
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