De sonhar
E de tantos sonhos, de tantos caminhos, que jamais escolheu algum. Enquanto a vida ia se descortinando em suas múltiplas e desconcertantes realidades, ela ia sonhando os muitos sonhos possíveis.
Com o passar dos anos, achou, numa noite escura, que devia colocar os pés no chão. E, na medida que ia se embrenhando nas realidades, os sonhos foram se perdendo na imensidão do céu - como balões de gás, coloridos, subindo, subindo na direção do vento...
Ás vezes ela olhava para o céu imaginando para onde teriam ido os sonhos que flutuaram pelo firmamento. Sabia que não se perdiam - apenas vagavam com o vento, órfãos de sonhador, até que alguém os adotasse e acalentasse. No entanto, tentava não pensar muito nisso. Por mais que não soubesse o que fazer com as mãos, sem sem sonhos de balão, catavento e algodão doce, insistia em manter seus pés descalsos bem firmes na realidade.
A realidade lhe parecia ciumenta e exigente. Tomava-lhe a atenção e o sono, falava muito alto para dominar-lhe a audição, exibia imagens intermitentes, em vários tons de cinza, preto, branco e pastel. E sempre - sempre mesmo - queria respostas. Respostas que ela, atordoada, não sabia.
Durante muito tempo, ela caminhou assim. Os pés descalsos sempre tropeçando, os olhos atentos para as imagens aparentemente desconexas da realidade, a cabeça sempre procurando as respostas - as certas - e sem saber muito bem por quê. A única coisa que se lembrava era que tinha que conseguir - o quê mesmo??? Não se importava. O caminho da realidade lhe absorvia, tinha muita coisa pra resolver. Já não olhava mais para o céu nem imaginava onde estariam seus balões coloridos. Estava muito ocupada. Conseguira uma ocupação para as mãos: empilhar pedras que calçariam o caminho. Empilhar pedras era muito importante.
Então, num dia como outro qualquer, seus pés, que a muito já não sentiam a dor dos tropeços, começaram a falhar. E ela, que a muito não desviava o olhar da realidade, olhou para eles: seus pés. Demorou muito tempo para que ela entendesse a razão dessa atitude tão impensada. Pois, como se não bastasse olhar os próprios pés, o olhar foi atraído para as mãos, para o ventre, e dali para os lados, para cima, para trás. Alcançou o horizonte, o firmamento, e ela sentiu os olhos ardendo e lacrimejando. Como se tudo fosse muito grande para um olhar acostumado ao quadradinho de cores pastéis da realidade.
Ficou aterrada com tudo aquilo. Percebeu que seus pés estavam insensíveis e rígidos. Suas mãos se contorciam com os muitos anos de movimentos repetitivos, e estavam vazias. Seu ventre e seu corpo estavam sem cor e tristemente envelhecidos. Haviam árvores do seu lado - como nunca percebera? o céu, o horizonte, o firmamento, o espaço além, e com algum esforço a pergunta emergiu: onde e como estariam os sonhos em forma de balões coloridos? Então olhou para trás e viu as pedrinhas empilhadas - trabalho de uma vida inteira. Esforçou-se para lembrar por quê. Mas concluiu que, na verdade, não sabia.
Também não sabia o que fazer agora. Ficou olhando os pontinhos de cores vivas ao sabor do vento - eram sonhos, e eram tantos que jamais pôde escolher algum. Ficou admirando ao redor - balões, cataventos, algodão-doce, flores, bichos, aviões de papel. Estava na entrada do bosque. E foi dessa forma que a Morte a encontrou.