HOJE QUEM PAGA SOU EU Segunda parte

Já passava das 10 da manhã. Acho que deveria me assustar com alguém batendo à minha porta. Foi uma noite mal dormida, mas, considerando o acontecido, não foi das piores. E aquela visita que eu não poderia chamar de inesperada, não me surpreendeu em nada. Afinal, eu era ou deveria ser um foragido da justiça. Atendi a porta com a mesma calma com que abriria para o carteiro, ou coisa que o valha.

- Bom dia!

- Bom dia! Respondi.

Aquela cortesia, considerando a situação me parecia sem propósito, meio cômica, poderia dizer. Abri mais a porta para olhar melhor, ou para dar passagem a quantos fossem os meus visitantes. Era o delegado, estava só.

- Com licença...

- Claro tenha a bondade...

Discretamente, fui dando uma conferida. Não trazia algemas, e nenhuma arma aparente. Acomodou-se sem cerimônia na minha poltrona preferida. Por minha vez, fiquei no sofá, procurando alguma maneira de abrir o diálogo, nada me passava pela cabeça. Resolvi esperar que ele tomasse a iniciativa, que só depois de acender o cigarro, e com muita calma, resolveu falar, como quem repreende a traquinagem de um filho.

- O que foi que te deu na cabeça, rapaz?

A cidade está na maior agitação. A oposição já esta assanhada pra crucificar alguém, mas, esta corja não me preocupa. O prefeito, que deve e deve muito, favores e dinheiro, a Carmosina, quer que eu abafe o caso, o mais rápido possível. O diabo é controlar as beatas que resolveram acampar na porta do bordel, quero dizer, do cabaré. Olha que sinuca de bico que eu estou metido. O juiz da Comarca, que pra completar, tem um chodó por Carmo, desde o tempo em que Filomena era a dona do bordel, quer uma solução urgente e política para o caso. Agora você entenda a minha situação: O Juiz quer que eu acabe com o faniquito das beatas, Mas, de que jeito? Na lei elas nem se movem. Baixar o cacete seria o fim da minha carreira. E a situação só não está pior, por que o vigário resolveu não se envolver, que ele não é besta.

Fiz uma cara de interessado, pedi licença, e fui até a geladeira pegar duas cervejas. O Dr. Delegado não parava de falar dos seus próprios problemas. Já estava achando tudo aquilo meio caricato. Só eu que não participava do assunto, parecia que estávamos falando de outra pessoa. Enfim, depois de muita conversa mole, o Dr. Delegado revolveu tomar o meu depoimento. Melhor dizendo. Resolveu fazer o meu depoimento. Mesmo que eu quisesse, e eu não queria alegar inocência, conseguiria inventar uma história tão mal engendrada. O delegado era meu amigo, e um velho companheiro de farras, bandalheira, cachaçada e mulheres. Formou-se em Direito, como, ainda é um segredo que ele pretende levar para o túmulo. Ele mesmo faz esta piada, ele mesmo ri, e acho que, só ele acha graça.

Não é raro, aqui por estas bandas, acontecer no meio da orgia e cachaçada, num desses arranca-rabos, alguém tombar ferido ou morto por um tiro, que dependendo da importância, ou não, do morto, ninguém sabe de onde veio, ou quem atirou. Constatei melancolicamente, que eu era uma dessas pessoas refratárias à lei ou à justiça. Filho e neto de latifundiários, que mesmo depois de uma considerável decadência financeira, mantinha o prestígio político, e um poder, que ninguém ousava desafiar. Os fazendeiros mandavam, todavia, representados pelas figuras mais importante da cidade, mesmo sem definir a ordem hierárquica, eram elas, o prefeito, o juiz da comarca, o delegado, o padre e a dona do bordel. O resto era contabilizado como, voto meu, voto seu.

Eu jamais gostei ou tive competência para o trabalho de fazenda, que na verdade, não era nem um pouco criativo, divertido, ou dependesse de grande conhecimento. Quem cuidava de tudo, era o administrador. Que resolvia, contratava, demitia, fazia as contas, e se fosse o caso, mandava dar uma surra em algum “desabusado”. Eu só teria que dar uns berros de vez em quando, pra mostrar autoridade, depois, era só recolher o dinheiro e gastar com as putas.

Da parte de recolher o dinheiro em diante, eu achava boa. Eu só não gostava era de ficar na fazenda. Meu pai cometeu um erro estratégico, quando me mandou estudar no Rio de Janeiro. Era um mundo diferente, outra cultura e costumes, e eu gostava aquele charme da cidade, a elegância e a graça das cariocas, as conversas educadas, que mesmo pobres de conteúdo, encantavam as noites, entre boa bebida e boa música. Mal terminei a faculdade, e tive que voltar para a fazenda. Mas não era para berrar com os peões, que eu havia me formado em administração, Meu pai já estava cansado, o administrador dava conta do serviço, mas o velho não queria se aborrecer, e para não se aborrecer, pediu ao governador, de quem era amigo, e credor de muitos e muitos favores, que me arranjasse uma “teta,” só, para que eu não ficasse parecendo um vadio, perambulando pela cidade. E foi assim, que eu fui parar na Secretaria de Fazenda. O salário, mesmo que eu não recebesse um reforço da fazenda, dava para viver, tranquilamente folgado e entediado, entre o expediente durante o dia, e as noites no cabaré de Carmo.

Enquanto o Dr. Delegado dava tratos à bola para me colocar como vítima, ou testemunha do infausto acontecimento, eu me preocupava com Carmo, e com as meninas, que por minha culpa estavam passando o maior aperto. E o delegado pressionada pelo Juiz da Comarca, precisando manter o vigário, lá na sua santa neutralidade, e não podia deixar Camosina na mão. Como resolver a situação, sem apelar para o destacamento policial, que já estava doida pra baixar a porrada. Se acontecer uma desgraça dessas, vai dar uma merda federal.

Eu só não entendia por que, naquela altura dos acontecimentos, ningúem havia manifestado pesar pelo infeliz Cleversom Aparecido. Só Adelaide, Carmo e as meninas. Trataram do enterro, e prestaram todas as homenagens fúnebres de acordo com a fé cristã.

Terminados os ofícios fúnebres, voltaram para casa, pois havia outros problemas para resolver. As beatas ainda estavam de plantão, rezando alto, e pedindo a Deus e as autoridades, que acabassem com aquele antro de perdição! O burburinho da cidade, só se comparava aos melhores dias de quermesses ou de eleição. Os bares cheios formavam uma algazarra, que parecia uma festa, com evidente demonstração de apoio e solidariedade à Carmô, por quem todos torciam e acreditavam que resolveria a questão com inteligência e diplomacia. Ninguém apostava contra. E resolveu. Teve gente que se mijou de rir, quando começou a correria das beatas, diante da cidade reunida, e doida por novidades. Mais uma de Carmô. As beatas cerraram fileira em frente à porta do bordel, brandindo suas bíblias, terços, rosários, guarda-chuvas. Gritando palavras de ordem: Fora com as pecadoras, fechem o antro de perdição, expulsem satanás! Foi quando a porta da frente foi se abrindo lentamente. Parecia uma cena de teatro muito bem ensaiada. As beatas se calaram por um instante na expectativa. E quando finalmente a porta se abriu por completo, os refletores apontaram para Ozório, com seus dois metros bem medidos de altura, e seus cento e trinta quilos, completamente nu, e ostentando um laço vermelho na estrovenga, abriu os braços, e sorridente, chamava carinhosamente: venham meninas! Quem vai abrir o presente? Depois do corre- corre das beatas, aí é que a coisa ficou animada. As piadas cruzavam a cidade de ponta a ponta. Uma delas é que Dona Etelvina, havia corrido de costas, para não desgrudar o olho, daquilo que o vulgo passou a chamar de “O impávido colosso” Depois foram se refugiar na igreja, acabando com o sossego do padre, que não queria se envolver em confusão. O pior havia passado. Entre rezas e longos suspiros, elas foram se acalmando e nunca mais voltaram à carga. ( O MOVIMENTO PELA MORAL E BONS COSTUMES COM DEUS PELA FÈ E DEMOCRACIA ETC... ETC...) ficou desmoralizado. Mesmo quando uma das militantes renitentes tentou se manifestar, os moleques debochados, e sempre presentes, não perdoaram:

- Tá com saudade do Ozório dona Carmelita?

O delegado já tinha todo o processo no esquema, conforme instrução do Meritíssimo Juiz da Comarca. A promotoria iria fazer vista grossa.

A minha intenção era assumir a morte do cantor, mas, não era mais possível. Toda a cúpula do poder estava mobilizada para transformar o acontecido, numa simples confusão com tiros e bebedeiras. E que lamentavelmente causou a morte do querido e infortunado cantor. Qualquer outra versão já estava descartada. Da minha parte então, seria vista como uma grande desfeita e desconsideração. Era evidente, que todo aquele cuidado, não era uma demonstração de apreço, pela minha pessoa, ou pela minha família. Eu era um deles, embora não assumisse. Qualquer tipo de punição poderia abrir um precedente perigoso. E assim, a poeira foi baixando, e tudo foi voltando ao normal. Lucy foi mesmo pra São Paulo, aprender com a tia, a profissão de cabeleireira.

Ninguém mais viu Adelaide. Dizem que chorou muito com a morte de Juanito, e depois do enterro, nunca mais apareceu na cidade. Carmosina reabriu o cabaré com uma cantora e um pianista. Muita gente ainda estranhava o fato de Carmô insistir no ramo de prostituição. Afinal, já estava bem estabilizada na vida, e nunca faltou oportunidade para outros negócios mais lucrativos, ou mesmo se aposentar com uma boa renda acumulada em todos esses anos. Ou poderia morar com a filha na França, e apagar para sempre o estigma de cafetina. Mas ela não queria. A mágoa que guardava no peito era muito forte para esquecer. Fora humilhada, expulsa de casa com a roupa no corpo, debaixo de gritos e ofensas. Quando seu Aparício ficou sabendo que aquele noivo, tão bem falante e tão bem educado, não tinha um gato para puxar pelo rabo, e ainda por cima era artista de circo, “gente que não presta”. Saiu pelo mundo prometendo voltar para tratar do casamento. Realmente voltou, mas, era tarde demais. A barriga de Carmô já estava aparecendo, e ninguém acreditava que ele iria voltar. Só Carmô acreditava. Nataniel foi procurar por ela. Não estava em casa. Seu Aparício não admitia, nem admitiria jamais estar errado no julgamento que fizera do rapaz. O mal já estava feito, não era homem de pedir perdão, mesmo estando errado. Só era capaz de odiar, Odiava a miséria em que vivia, a sua condição subalterna, aquela terra que não era sua, mas que sugara toda a sua juventude, suas esperanças, poucos e pobres sonhos. Era pobre até pra sonhar.

Cuspiu todo o seu ódio, desespero e vergonha na cara do rapaz. Lugar de quenga é na zona!

Nataniel foi até o bordel de Filomena. Não se sentia confortável, mas, não iria recuar ao seu dever, se não bastasse o seu amor, que não era pouco. Mas todo o mal, realmente já estava feito. Humilhação demais, sofrimento demais, muita dor e muito ódio, envenenando a alma, ódio que doía que cegava e não dava espaço para nenhum outro sentimento. Carmosina ficaria na casa de Filomena, e quando a criança nascesse, seria criada pela família do pai. A mãe poderia visitá-la quando quisesse. Foi combinado assim.

Quando Carmosina chegou com a roupa do corpo na casa de Filomena, magra e faminta, calçando um par de sandálias de couro bastante gastas, já não chorava mais. – Dizem que, as lágrimas secam quando se chora demais - Deve ser verdade. Nunca mais ninguém a viu chorar. Ajudava na cozinha, costurava, organizava a despensa, e procurava ser útil de todas as maneiras. Só não aparecia no salão durante a noite. Filomena não gostava de ver mulher buchuda durante a função. Trás má sorte. Quando a criança nasceu, passou um tempo com Carmô, até que o pai fosse buscá-la. Era uma menina, e já conquistara as meninas, e Filomena, que se considerava madrinha da pequena Elenise, nome que ela mesma escolheu, e assim ficou escolhido. Passado o resguardo, e mostrando boa disposição e aparência, incorporou-se ao elenco das meninas, fazendo furor entre os freqüentadores. Era uma bela morena, um pouco mais alta que o padrão das mulheres da região, só faltava um pouco mais de carne sobre os ossos, para completar uma bela figura de mulher. Começou a ganhar dinheiro pela primeira vez na sua vida. Trabalhar. Sempre trabalhou. Ajudando na colheita, cozinhava na casa dos patrões, lavando, passando... Pagamento não tinha, ou se tinha, era incorporado ao salário do pai, tanto o dela como o da mãe, e dos irmãos, que sumiram no mundo, cansados de ser explorados pelo pai e pelo patrão. E só não era feliz, por causa da enorme carga de mágoas, e injustiças sofridas, mas andava satisfeita com a vida. Continuou cuidando da administração do cabaré, mantendo a limpeza, a despensa arrumada, fazia as compras, e nada saia errado. Filomena gostava e incentivava o seu dom de liderança, iniciativa. Aos poucos, foi transferindo algumas tarefas de mais responsabilidade para Carmô, que não atendia mais clientes. Era então a segunda pessoa em mando. Ganhava um dinheirinho a mais como compensação, posto, que não exercia mais a função pròpriamente dita.

Procurava saber sempre notícias da mãe, que não andava bem de saúde, e quando conseguia um portador, mandava algum dinheiro para ela, que passou a ser o único sustento da casa. O pai estava sem trabalho, e sem os filhos pra ajudar, não conseguia sozinho dar conta de nenhum serviço. Morava de favor em terra alheia, e engolia em seco a humilhação de ser sustentado com o dinheiro de quenga. Seu Aparício não ia à cidade, Tinha medo de encontrar a filha e sabia que não poderia resistir à vergonha, se ela lhe jogasse na cara o seu desprezo e o dinheiro que pagava a sua comida. Vez por outra arranjava alguns trocados, consertando uma cerca ou vendendo um galo do quintal. Sempre pouco. Comprava cachaça, e bebia até cair.

O cabaré não tinha problemas. Bem freqüentado pelos endinheirados da cidade, viajantes fazendeiros da região ou estudantes em féria, que gostavam de freqüentar os puteiros do interior, só por curiosidade, ou por farra. São todos iguais em todo mundo. Porém com uma diferença a considerar: Aqui, valente não se cria. E isso ficou provado, certa ocasião em que a cidade inteira estava numa agitação sem precedentes, por ocasião de uma feira agropecuária, que os fazendeiros resolveram promover. A cidade não tinha a mínima estrutura para o evento. Com show de duplas sertanejas, grupo s de dança, rodeio, e o diabo a quatro. Chegava que chegava gente, de toda parte, tipo e qualidade. O único hotel, não oferecia nem espaço nem conforto. Com apenas dez quartos, tendo como mobília, uma cama de casal e outra de solteiro, uma prateleira baixa, que poderia servir de mesa, e duas cadeiras. Mais que o suficiente para os tipos de hóspedes que passavam por lá. E raramente por mais de uma noite. Vendedores, motoristas de caminhão. Eventualmente, um casal de passagem, num encontro furtivo, chegava bem tarde, discretamente, e saia bem cedo mais discretamente ainda. Portanto. O hotel não poderia abrigar mais de trinta, considerando três em cada quarto. Os outros ficaram perambulando pelas ruas, dormindo nos carros, ou lotando os bares até de manhã. N o bordel de Filomena, não cabia mais ninguém. Além dos freqüentadores habituais, apareceu por lá, uma gente mal educada, querendo beber muito e gastar pouco. A situação se mantinha sob controle, graças aos velhos amigos de Filomena, que de vez em quando abriam o paletó, mostrando ostensivamente os enormes trabucos, e impondo respeito. Correria tudo bem, não fosse um desavisado, e já meio alto de cachaça, resolvido agarrar uma das meninas à força. Filomena saiu em defesa da moça, e ainda com muita calma e diplomacia, falou com a voz bastante mansa: respeite a menina rapaz. Não deu resultado. O cabra empurrou Filomena, que teve que ser amparada pelas meninas, para não cair. E ainda desacatou:

- Só mesmo numa cidade de bosta, que a gente tem que respeitar puta.

Ensaiou uma gargalhada, que teve que engolir em seco, quando sentiu dois palmos de punhal lhe espetando a garganta, e a voz de Carmô, fria e decidida: Pois aqui se respeita puta, seu cabra safado, só não se respeita é chibumgo metido a macho... O sujeito na ponta dos pés suava mais que tampa de chaleira, como se diz por aqui.

– Capa ele Carmô! Gritava um.

Uma das meninas tripudiou:

- Sangra ele aqui dentro não, que eu encerei o assoalho hoje! Vamos levar o cabra lá pra fora, interveio o Dr. Pessoa, advogado, com banca na cidade, filho de comerciante local, sem dinheiro, mas, com muito prestígio.

A sugestão foi providencial. Foi só chegar à rua, que o sujeitinho se mijou todo. Deixe-o ir, ponderou, Ele vai acabar cagando na calçada. E premiou lhe a cara com meia dúzia de bofetes, só por recreação. Carmô gloriosa adentrou o bordel de braços com o Dr. Pessoa, que aproveitou o ensejo, para dizer uns “ypicilones” no ouvido da morena, que parecia estar gostando. Começou ali um chamego, que parecia ser bastante promissor, com o beneplácito de Filomena.

O relacionamento, só não vingou, por conta de um curso, que ele deveria fazer em São Paulo, para seguir a carreira de juiz. Advogado de interior, só pode ostentar mesmo, o diploma. Além de orientação legal oferecida aos fazendeiros da região, umas poucas querelas de gente pobre, que bem poderiam ser resolvidas na Delegacia, ou no cano da repetição, que era mais comum acontecer. Enquanto isso, nada de interessante acontecia que pudesse quebrar o marasmo, além das eleições de carta marcadas, ou as quermesses, só mesmo, quando aparecia mulher nova no bordel. Os homens se alvoroçavam, e as mulheres casadas, se uniam numa cruzada contra a mais nova ameaça à moral e aos bons costumes.

Com o afastamento do Dr. Pessoa. Carmosina retomou o seu semblante severo, dedicando o seu tempo, ao trabalho de organizar o funcionamento do bordel, além de cuidar de Filomena, que já estava bastante doente. Os médicos recomendavam muito cuidados, dieta, repouso, e principalmente, ficar longe do cigarro. O item cigarro, era a parte mais difícil de obedecer, fumava escondido, e não abria mão, de seus dois ou três cálices de vinho do porto, Que segundo ela, faziam muito bem. Mas, a sua saúde inspirava cuidados. E como não tinha parentes, Carmô resolveu assumir a obrigação de zelar por ela até o fim. E acabou assumindo também toda a responsabilidade da casa. Fez algumas mudanças na decoração, mudando também a estrutura de funcionamento. A idéia, era fazer um ambiente mais glamoroso, com uma pista de dança, melhorando, também a qualidade da bebida, passando a servir também as importada, whisky, conhaque francês, champanhe. Tudo da melhor qualidade, para atrair uma nova casta de clientes, que estava surgindo por aqui. Ainda não era a nata da sociedade. Apenas filhos de fazendeiros, recém formados, ou filhos e parentes de políticos... Enfim. Pessoas viajadas, que imitavam os hábitos e costumes que aprenderam no estrangeiro. No fundo, os mesmos “cascas-de-jaca” cujo dinheiro fazia aparentar certo verniz. Mas, deu certo. O ambiente mais sofisticado, e a bebida mais cara, afastavam a peonada, que passaram a freqüentar os bordéis de beira de estrada, assim como os viajantes e caminhoneiros. Ao mesmo tempo, que a nova casa, agora, com um belo letreiro em néon, LE BISTRÔ CABARÉ, passou a receber os maiores figurões do poder, levado pelos latifundiários. Era comum senadores e ministros de estado, reverenciando e beijando a mão de Carmosina, que a bem da verdade, estava cada dia mais linda, bem vestida, e tão elegante como qualquer dama da alta sociedade, de qualquer parte do mundo. Os barões, exportadores, ou da agropecuária, ficavam enlouquecidos, e gastavam fortunas para impressionar. Carmô sabia, e como sabia usar o seu poder de mulher, e a sua influência junto aos fazendeiros e políticos, independente do partido ou ideologia.

Dias antes de Filomena falecer, recebeu para uma conversa particular, a visita do Dr. Pessoa, junto com o escrivão e o delegado. Nem parecia que ela estava doente. Não dava para ouvir a conversa, mas, vez por outra se ouvia o riso de Filomena, dando a entender que estava tudo bem, e que o assunto não era muito sério. Quando eles saíram, Carmô havia mandado preparar uma mesa para as visitas. Que aceitaram de bom grado o lanche que lhes era oferecido. Sentara m animados, e falaram de amenidades, frustrando a curiosidade das meninas, que ficaram de ouvidos atentos, tentando pegar uma ponta do assunto, daquela reunião a portas fechadas. O delegado e o escrivão saíram logo, alegando trabalho, e providências a tomar. Dr. Pessoa ficou mais um pouco, queria despedir-se de Carmosina, por quem guardava uma paixão, que apesar de não confessar em público, não era segredo pra ninguém. Trocaram algumas palavras de simples cordialidade, mas, os olhares e a voz, quase em sussurro, denunciavam um vulcão, prestes a detonar.

- É Carmo... Foi besteira minha querer ser juiz.

- Você não vai desistir agora!

Não!

Mas a vontade era dizer com todas as letras.

- Pede Carmô, de um sinal... Pede que eu fico. Pede Carmô!

Carmô não pediu, ele não ficou. Voltou duas semanas depois, para o enterro de Filomena, e abrir o testamento, que fora incumbido de fazer, há poucos dias atrás. A finada deixou uma quantia em dinheiro, para dividir entre as meninas, e tudo mais, casas de aluguel, terras, uma fortuna em ações, o bordel, e muitos outros bens, ficaram para Carmosina. Ninguém achou estranha a vontade da velha cafetina. Era como tornar de direito, uma situação de fato. A própria beneficiária não se manifestou como se esperava. Afinal, já se considerava rica, em comparação com a pobreza que conhecera na pele e na alma. Trocaria tudo aquilo por uma só noite sem lembrar, tanta humilhação, que alimentavam a mágoa de ter sido escorraçada de casa, a fome, a dor de viver longe da filha, de não ter tido a coragem de pedir para o Dr. Pessoa não ir embora. Mas, se ele pedisse... Queria ser feliz com seu homem, ser mãe, bordar toalhas de mesa, ir à missa. Quem sabe, no lugar de uma mulher dama, uma dama do lar? O seu passado, ela achava, deixara um ranço, que contaminava. Aquela amargura a impedia de ser feliz, enquanto ela não fosse capaz de perdoar o velho Aparício, que por sua vez, padecia do mesmo mal. E agora, mais doente, e sem forças, consumido pelo rancor e pela cachaça. Depois que a mãe morreu, continuou mandando dinheiro, por um conhecido, que passava sempre perto da tapera onde morava o velho Aparício. Foi por ele também que ficou sabendo, que o homem estava nas últimas. Não demorou a se decidir. Mandou chamar um carro de aluguel, e foi ver o pai. Sabia que era pela última vez No caminho procurava colocar os pensamentos em ordem. O que iria dizer? Ainda não atinava se aquela atitude era um perdão, ou iria jogar-lhe na cara, não sabia o que. Também não se sentia uma vitoriosa. Na tapera, além do mau cheiro e o lamentável estado de abandono, nada havia mudado. Na velha cama de madeira tosca, entre lençóis encardidos, o velho se estendia já em posição de morto. O rosto sem nenhuma expressão, e com a voz fraca, chamou.

- Carmosina! Não deixe o orgulho fazer com você, o mesmo que fez comigo.

Foi a última vez que ouviu aquela voz. Voz de um homem derrotado, entregando os pontos e a vida. Com a ajuda do motorista, colocou o velho no carro, e tocaram direto para uma clinica geriátrica, onde ele ficou internado, para receber da vida, o seu primeiro e último privilégio: Morrer com dignidade.

Queria chorar, precisava chorar... Dizem que as lágrimas secam...

Dias depois, o enterro, com a presença das meninas, uns poucos amigos, incluindo o Delegado e o padre, que mesmo censurando pelas beatas, não se furtou em levar ao falecido, os sacramentos, exigidos pela fé cristã. O cabaré funcionou normalmente, e ninguém tocou no assunto. Nesta ocasião, eu já não freqüentava mais a casa de Carmo, seria doloroso para mim, e constrangedor para todos. O caso Juanito ficou mesmo por conta de um conflito de cachaça, e tiroteio. Continuei trabalhando na secretaria de fazenda. Precisava preencher o meu tempo. Sem Adelaide, e sem as noites no cabaré, me aproximei mais dos colegas de trabalho, principalmente do Toledo, que mesmo sendo corrupto e irreverente, revelou-se um grande ser humano. Fiquei sabendo, que ajudava orfanatos e asilos, prestando serviços, ou com dinheiro. Boa parte, das propinas, naturalmente. E assim, ficamos amigos.

A cidade estava calma, como não acontecia há muito tempo. Alguns poucos bêbados na rua, casais voltando de festas, e bares, se despedindo, ou tomando o caminho do hotel. A noite já estava em meio, e os clientes não manifestavam a mínima vontade de ir embora. Poucos casais deslizavam na pista de dança, outros bebiam ou trocavam carícias nas mesas dos fundos, onde era mais escuro. Carmosina acomodou-se em sua mesa costumeira, de onde poderia vislumbrar todo o salão. Era o seu posto de observação. Pediu um cálice de vinho do porto, hábito refinado que aprendeu com Filomena. Assim como tudo que sabia, vestir-se, andar com elegância, falar corretamente. Procurava também, manter-se informada, das coisas da política, e da moda. Tudo aquilo formava um belo conjunto, além da sua beleza natural. Sorvia a bebida com prazer, era o seu momento de reflexão. Mas, naquela noite, alguma coisa estava diferente. Sentia-se leve, e livre de preocupações, como não acontecia há tempos. Não havia mais razão para orgulho ou rancor, Não tinha mais á quem odiar, ou guardar mágoas. Pensou com carinho na filha, que morava na França. Agora casada. Devia ser feliz. Sentiu saudades dos dias que se achava quase feliz, com o seu romance meio complicado com o Dr. Pessoa. Não mais um advogado de interior, namorador e boêmio. Agora, o meritíssimo Senhor Juiz da Comarca. Com voz e prestígio. Percebeu com agradável surpresa, que estava chorando, como já havia esquecido há anos. E sorrindo também. Sentiu um prazer tão grande que chegou a imaginar, que aquilo é que era a tal de felicidade. Entre pensar e agir, Carmosina não deixava espaço. Chamou o garçom, que ficou assustado com a pergunta:

-Tem champanhe?

- Claro Dona Carmosina!

- Tem bastante?

- Sim senhora.!

- Pois traga uma garrafa para mim, e uma para cada mesa, por conta da casa.

Entregou as chaves do bordel para a mais antiga das meninas, e naquela mesma madrugada, pegou um carro de aluguel, e nunca mais apareceu.

Fim