PRETERITO MAIS QUE PERFEITO

Acordara aquela manhã num passado perfeito. Perfeito sobre linhas nobres, onde imaginava um livro escrito sua vida.

Podia ver agora o momento que amara, as lembrança que tivera do outrora. Sempre um vulto oculto, atrás de uma porta, fechando as cortinas, ligando uma torneira. Apenas uma mão, umas pernas que balança obedecendo ao desejo dos pés, pés firmados em calçados. Sempre saltos altos. O rebolado destacava-se.

Ela era uma silhueta, um corpo que provocava, lábios que umedeciam por um beijo ou desejo de. Ela era diáfana, distante, perplexa diante de um mundo real que conhecia apenas por imagens via satélite.

Ela era anônima para quem a conhecia assim mais intimamente. Esqueciam facilmente seu nome. Ela nunca falava do seu passado; não entrava em detalhes. Pedia sigilo. Não sabia para que.

Preservara-se, mas não parecia intacta. Será que alguém, de algum lugar, de qualquer instancia conhecera-a.

Tinha documentos: certidão de nascimento, identidade, CPF, até certidão de casamento, e breve-breve por mais que demorasse uma certidão de óbito também.

Mas era, talvez ainda seja, ser-se-ia por muito tempo.

Causaria saudade? Quem teria saudades dela. Ela que era um vulto, uma mão abrindo uma torneira, mãos entregando-se lânguidas para manicura, pernas que se cruzavam, pés que pediam sapatos, glúteos que remexiam obedecendo ao andar, vulto que se escondia atrás de uma cortina por uma janela embaçada que nunca tivera a coragem de limpar.

Rodney Aragão.

26 de julho de 2009