Alucina-ação-sólidã-o

Fica parado, não fala nada não. Deixa eu te sentir assim de longe, quase brilhante, antes que tudo aconteça. Não respire.

De manhã tudo volta ao normal. Se é que a vida pode ser considerada de alguma maneira normal. Porque não há nada normal em ter uma bola de hélio em ebulição rodando sobre nossas cabeças mas o sol não impressiona mais ninguém. Não, não impressiona. Chips de computador talvez, mas o Sol de maneira nenhuma. O sol é só uma estrela, e mesmo que não tenha nada de banal em ser uma estrela, é exatamente isso que esse “só” quer dizer. Banal, comum.

E então amanheceu e tudo voltou ao normal. A padaria abriu, a moça do lado saiu pontualmente às 7 para comprar o seu café da manhã e eu acordei com o ela trancando a porta. Acordei é forma de dizer, porque na verdade eu não estava dormindo, eu estava hipnotizado.

Isso acontece comigo sempre. Eu fiz alguma coisa, e eu ainda não sei o que foi, a alguma criatura noturna. Então sempre que o sol some essa criatura vem e me hipnotiza. Ás vezes ela se atrasa, às vezes ela falta, mas quase sempre chega assim que a luz vai embora. E então eu enxergo tudo de maneira muito estranha.

As paredes se expandem, ficam muito longas, quase infinitas e ficam moles como se fossem feitas de bala macia. E a luz fica fragmentada, como se tudo fosse feito de pontos. Aqui é escuro, aqui é claro, ali é escuro, ali é claro, escuro-claro-escuro-escuro-claro-claro. Escuro. Claro. Eternamente assim, a luz completamente fragmentada. Não, ainda existem nuances. Ainda existe cinza, quase-claro, quase-escuro. Mas tudo com limites muito bem definidos.

E então eu fico com vontade de andar e fico dando voltas nos lugares. Lugares é forma de falar, porque na verdade eu só ando pelo meu apartamento. Dá medo sair nas ruas desse jeito. Sabe-se lá o que vai pular da parte escura. Ou mesmo da parte clara, porque não?

Criaturas feitas de luz, criaturas feitas de sombra. Só sombra, só luz...

E aí eu fico rodando, rodando, rodando, até que completamente tonto eu me sento no chão. Com as mãos cruzadas sobre o rosto eu imploro para que a noite acabe logo. Para que eu, por assim dizer, desperte. Porque eu tenho vontade de andar e de sair, mas o medo me sufoca. E aí fico encolhido, pedindo, baixinho. E acho que aí a criatura fica com pena de mim, porque sinto o meu corpo ficar cada vez mais mole. E lento, bem lento, eu sinto que eu sou quase água e que se houvesse um ralo ali perto eu escorreria por ele. Mas não há ralo nenhum e nesse estado eu fico bem tranqüilo. E fico assim, hibernando numa espécie de sonho, até que amanhece e tudo volta ao normal. E a menina da porta ao lado, com seu trinco barulhento me traz de volta ao estado sólido.

Uma vez de volta ao normal levo uma via normal. Saio de casa, como qualquer coisa na padaria, trabalho, flerto com alguém num ponto de ônibus, vou ao cinema, rio das outras pessoas, dou esmolas, entro na igreja, recuso propagandas, encho o tanque do carro. Faço coisas falsamente cotidianas e de vez em quando me pego pensando em como fugir do tormento de toda noite. Como escapar da tal criatura que eu nem sei porque se envolveu comigo. E sempre que eu me pego pensando nisso disfarço e me levo para outro lugar. Me soa errado.

Às vezes me enfureço no meio do dia. Por quê? Porque eu? Porque essa criatura cismou comigo? Eu não fiz nada para ninguém, nada absolutamente nada. Eu sou uma boa pessoa. Xingo bastante e então fico com pena da criatura. Ela nem deve saber o que esta fazendo. Ela também deve ser uma boa criatura. Às vezes é pro meu próprio bem. Então eu choro, choro até que a garganta arranhe e que o nariz se encha de catarro. Choro até não ser mais possível respirar.

E então teve o dia. Entre a oitava e a nona hora do dia, eu me sentei num banco de praça e fiquei olhando o céu. Um cigarro apoiado no lábio, o corpo cheio de uma preguiça molenga, farto do trabalho e do mundo inteiro. Foi então que eu senti que alguma coisa me observava. Olhei em volta e todas as pessoas viviam as suas próprias vidas. Ignorei o sentimento e fui fazer alguma coisa, pois ficar parado e ser observado era algo que me incomodava. Fui andando de volta para o trabalho, atravessei a rua no semáforo, virei a esquerda e subi uma ladeira. Foi quando entrei no beco que percebi que as paredes estavam amolecendo. Parei e quis chorar mas não consegui. Ali, no meio do dia, no meio da rua. A tão pouco tempo da última vez. E quando as luzes começaram a se fragmentar eu pude enxergar a criatura, ela era doce, de um jeito místico e ficou me pedindo para não ter medo.

Não, não foi bem assim. Ela não era doce, nem um pouco. Ela não me pediu nada. Ela veio se aproximando num misto de terror e dor. Ela era má. E eu queria, queria ardentemente que aquele encontro fosse doce e bonito. Então eu disse: Fica parado, não fala nada não. Deixa eu te sentir assim de longe, quase brilhante, antes que tudo aconteça. Não respire.

Não adiantou nada. Logo eu estava ardendo no beco, cheio de pena de mim mesmo, sobre os olhos de alguém que eu jamais vou compreender, duma circunstância tão absurdamente anormal que passou despercebida. Assim como essa enorme bola de hélio em ebulição que roda pelas nossas cabeças. Só mais uma coisa. Só.