O cofre do senador

O senador Turíbio Cavalcanti acorda cedo e abre a janela de sua mansão. Sente-se rejuvenescido com os primeiros raios de sol e o ar fresco e perfumado exalado do seu vasto jardim. Tanta felicidade o incita a proferir um discurso em louvor da natureza, mas nada diz por absoluta falta de quorum na sua casa. A empregada deve chegar em pouco. Enquanto isto, o velho político senta-se a sua escrivaninha para ler o jornal.

Turíbio ainda é chamado de senador, embora aposentado das tribunas, onde defendeu em quatro mandatos consecutivos, com muita abnegação, a conciliação dos interesses do Estado com os do cidadão. Vive sozinho após a morte da esposa e seu único filho mora no exterior.

Sua companhia mais próxima é a empregada Gelva, que entra em casa no momento em que ele lê o editorial de seu jornal preferido, um diário mais que centenário que irradia o pensamento das pessoas letradas, cultas e abastadas da sociedade. Enfim, aqueles que conduzem com eqüidade a vida do populacho.

Gelva bate levemente na porta e entra para dar bom dia ao patrão e receber as ordens. Turíbio passa algumas instruções e diz que ela não precisa trabalhar nos próximos três dias, porque ele irá viajar, para participar de importante seminário político na Capital, onde encontrará seus amigos de partido. Gelva sorri e agradece: “muito obrigada, senhor”.

Os três dias são sexta-feira e fim de semana. Na noite de sábado, Gelva e seu companheiro, um pedreiro que vive de bicos, entram na mansão e levam o computador, o aparelho de som e a torradeira elétrica.

O senador só percebe a falta de um aparelho quatro dias depois de sua volta, quando resolve ouvir um disco com a música maravilhosa Jesus Alegria dos Homens, de Bach, interpretada pela Sinfônica de Berlim. Como não sabe usar computador e compra torrada pronta, nem deu pela falta dos demais eletrodomésticos roubados pela dupla.

Pergunta para Gelva o que sucede. A empregada, que já pensava não ser questionada sobre o sumiço, simula completo desconhecimento e surpresa do caso. “Ah, meu Deus! O que será que aconteceu, senador?”. E assim fica a situação. Para aproveitar o mesmo verbo, digo também que o senador fica sem ouvir a obra-prima de Bach.

Na próxima viagem, o senador passa quatro dias fora, para assistir ao casamento do filho de um governador, bem como aproveitar a casa de campo da família do anfitrião. Gelva e seu companheiro entram novamente na mansão e surrupiam a televisão pequena, o microondas, um colar de prata, que um dia ornamentou o pescoço da falecida senhora Cavalcanti, e a impressora, que eles não conseguiram carregar na primeira noite, para formar dupla com o computador.

Novamente, o patrão demora para notar o ocorrido. Tem medo de mexer no microondas, possui quatro televisões em casa e, sem saber informática, não precisa da impressora. Quase uma semana depois, no dia em que sua mulher faria aniversário, ele abre a gaveta da cômoda do quarto onde guarda carinhosamente os pertences que ela usava. É a única data do ano em que o velho senador admira as peças de sua esposa. Seu coração não resistiria a aberturas constantes da gaveta.

Gelva, que se conhecesse aquela mania no patrão não furtaria o colar, finge novamente estar perplexa. “Valha-me Deus. O sangue de Cristo tem poder. O que está acontecendo nesta casa senador?” E assim, o caso é esquecido e a gaveta, fechada.

A próxima viagem é mais longa. Quinze dias no exterior, para visitar o filho e pegar nos braços o netinho recém-nascido. Tanto tempo disponível aguça o desejo do casal que planeja golpe mais ousado: o cofre que o senador guarda atrás do quadro de um famoso pintor impressionista francês. Gelva observa o patrão mexer quase todo dia no cofre.

Marcam o plano para domingo, porque no sábado o companheiro dela encherá uma laje no bairro e depois comerá churrasco de carne dura e beberá cachaça, como sempre ocorre nestes eventos. Na tarde de domingo, já refeito da farra, ele seleciona as ferramentas que precisa: talhadeira, ponteira, martelo, marreta e furadeira. Se não conseguir perfurar o cofre para abri-lo, tirará o dito cujo da parede e o levará para casa. É justamente esta segunda estratégia que ele usa, porque a broca da furadeira mostra-se incapaz de penetrar no aço do cofre.

Correm horas de trabalho para quebrar a parede em volta do cofre. Como a propriedade é grande, o barulho da marreta na cabeça da talhadeira e da ponteira não é ouvido por ninguém. Finalmente, o cofre solto. Mas na hora de carregá-lo é um sufoco por que é muito pesado.

O marido de Gelva, hábil ao retirar o cofre da parede, deixa espaço para repor o quadro de forma a tapar o buraco. Além disso, retiram o entulho e limpam muito bem o local. Só não levam o quadro por achá-lo feio. “Este pintor é muito ruim. Não consigo enxergar direito a mulher e as flores. Acho que é porque o infeliz só tinha uma mão. Tá escrito aqui no cantinho: Manet”, comenta a empregada para seu companheiro.

Já em casa, o cofre escorrega das mãos do homem e cai no pé de Gelva, que urra de dor. Com auxílio de um maçarico, abrem e encontram apenas maços de papel com telefones, nomes de empresas de construção e de pessoas, recibos de depósito e extratos bancários em nome de desconhecidos e outros documentos em línguas estranhas. Enfim, dinheiro não há.

O senador volta dias antes do esperado porque discutiu com o filho que batizou o neto com nome estrangeiro. Acostumado às faltas de Gelva, o patrão espera dois dias até ligar para ela. Do outro lado da linha, surpresa, ela diz ao senador que ainda não foi trabalhar porque fraturou o dedão do pé esquerdo. “Fui conversar com meu marido numa obra e caiu um tijolo no meu pé”, justifica.

- Tudo bem Gelva. Espero que você se recupere logo porque viajo novamente semana que vem.