A mulher magra
Estávamos em grupo e quando isso me acontece acabo sozinha. Não porque não me dêem atenção, mas porque me vendo sem a obrigação de dar atenção a alguém eu me ensimesmo. E assim, naquele sobe e desce de Olinda, estávamos nós, o casal hospedeiro, o casal filho do casal hospedeiro e sua menininha, e os hospedados, o cientista francês e eu. Ajudava o fato de estarem falando em inglês e eu, embora compreenda alguma coisa, como dei a perceber algumas vezes por comentários em português, me mantinha calada a maior parte do tempo. Eu não falo inglês.
Eu a vi a primeira vez quando estávamos junto a um pátio onde comíamos tapiocas, eu a minha moda, com bastante coco ralado e leite condensado. O pátio era ladeado por pequenas lojas de artesanato e penso que me disseram que ali fora um dia o local onde se vendiam os escravos. Mas essa informação passou raspando por mim porque eu tinha acabado de vê-la. A mulher magra.
A mulher era tão magra que parecia um picolé redondo. Um picolé de caramelo porque tinha na pele o queimado do sol. Usava uma saia quase batendo no tornozelo, estampada em tons da própria cor de sua pele. E a blusa, uma blusinha seca, cava seca, decote seco, tinha a mesma cor. E o cabelo também. Muito curto. Ela estava por ali conversando com outros folgados na vida em voz bem alta, mas não consegui apreender o que ela falava. O grupo de meus amigos começou a dispersão e eu os segui, mas não sem antes pegar outra tapioca que eu já tinha engolido bem antes de chegar à esquina. Virando continuamente minha cabeça para continuar a ver a mulher magra até que ela simplesmente desapareceu do meu foco visual.
A partir daí ela surgia em todos os lugares aonde íamos. Na sorveteria, onde ela pegou em meu braço, causando um susto tão grande quando a vi, cara a cara, que meu sorvete caiu no chão. O dono da sorveteria com um rápido vai andando a expulsou do estabelecimento e eu comprei outro sorvete. Ela se dirigiu para a pracinha em frente e eu fui me afastando aos poucos, olhando para ela. E ela para mim. Aonde íamos, ela aparecia do nada. E quando aparecia eu ficava tão angustiada que buscava correndo algo para comer. Mal eu a via a fome surgia. Uma estranha fome. Minha boca secava, meu estômago apertava e eu corria em busca de alimento o que começou a causar espanto em meus companheiros. Comi panquecas. Novas tapiocas. Doces que ia encontrando em barraquinhas. Era uma coisa de louco. A certa altura, lá no alto da cidade, eu de repente dei um grito que espantou a todos. Eu tive uma visão que logo desapareceu, mas eu não podia contar aos meus amigos. Falei, ainda trêmula, que me assustara com uma ave, um urubu talvez. Mas não foi isso. Eu a vi ao longe, pairando no ar, tão magra quanto um mastro de navio. Quem iria acreditar se nem eu mesmo acreditava. Lembrei de uma visão que tive quando era menina, quanto caminhando pela linha do trem que margeava um campo de futebol, vi, caminhando do outro lado, uma girafa. E o mais espantoso é que quanto mais a girafa andava mais o seu pescoço crescia. Magro, magro, como a mulher magra. É claro, ninguém acreditou em mim quando contei, nem mesmo a minha avó que vivia me contando histórias fantásticas. Bastante encabulada eu aceitei a sugestão de voltar para Recife, afinal já anoitecia. Voltamos os quatro, eu, o cientista francês e meus amigos. O filho de meus amigos, sua mulher e a filhinha deles ficaram. No carro eu fui atrás com minha amiga, ela me contanto histórias e na frente os cientistas, o francês e o pernambucano. Eu me esforçava para prestar atenção na conversa dos dois, em inglês, e entabulava também uma conversa com minha amiga. Eu não queria deixar a minha mente vagar, mas não conseguia tirar da minha cabeça a imagem daquele varapau. Ora eu olhava para os lados e lá estava ela, correndo junto com o carro. Ora era parava em frente do carro e eu tinha que segurar meu grito de susto. Em certo momento percebi que o cientista francês nos convidava para encerrar a noite em um bar perto de seu Hotel e também da casa de meus amigos. Todos concordamos, eu em português é claro e me distraí de tal forma que aquela imagem saiu logo de minha cabeça. Já no bar, a coisa mudou de figura porque ela ficou do lado de fora da varanda em que estávamos olhando para mim com uma cara de fome tão grande que me levou a começar a comer de uma forma avassaladora. Escondidinho de carne seca. Caldo de aipim. Bolinho de bacalhau. E eu não parava mais. Comia e bebia caipirinha acompanhando o cientista francês. Só na bebida é claro porque eles já haviam parado de beber fazia tempo. Mas bastava eu olhar para fora e ver a mulher magra que eu pedia mais alguma coisa. Até que ela olhou para mim, deu uma banana e se virando caminhou em direção ao mar. E enquanto caminhava ela ia crescendo cada vez mais até virar uma sombra. Foi aí que eu, geralmente calada, comecei a falar feito uma maritaca. Em inglês. E eu nem percebi. De repente, após um tempo bem razoável, minha amiga rindo, me perguntou: Pia, porque você ficou a semana inteira calada e agora fala inglês como se soubesse. E bem? Eu não soube responder porque não entendi a pergunta. Pedi a ela que a refizesse, em inglês. Foi aí que ela se assustou e resolveu me levar para casa. Fomos caminhando pela orla e, por Deus, eu não conseguia nem ao menos pensar em português. E quando acordei no outro dia, o sol batendo em minha cara, acordei pensando em inglês. Só depois que tomei um bom banho as coisas voltaram ao normal. Graças a Deus.
Estávamos em grupo e quando isso me acontece acabo sozinha. Não porque não me dêem atenção, mas porque me vendo sem a obrigação de dar atenção a alguém eu me ensimesmo. E assim, naquele sobe e desce de Olinda, estávamos nós, o casal hospedeiro, o casal filho do casal hospedeiro e sua menininha, e os hospedados, o cientista francês e eu. Ajudava o fato de estarem falando em inglês e eu, embora compreenda alguma coisa, como dei a perceber algumas vezes por comentários em português, me mantinha calada a maior parte do tempo. Eu não falo inglês.
Eu a vi a primeira vez quando estávamos junto a um pátio onde comíamos tapiocas, eu a minha moda, com bastante coco ralado e leite condensado. O pátio era ladeado por pequenas lojas de artesanato e penso que me disseram que ali fora um dia o local onde se vendiam os escravos. Mas essa informação passou raspando por mim porque eu tinha acabado de vê-la. A mulher magra.
A mulher era tão magra que parecia um picolé redondo. Um picolé de caramelo porque tinha na pele o queimado do sol. Usava uma saia quase batendo no tornozelo, estampada em tons da própria cor de sua pele. E a blusa, uma blusinha seca, cava seca, decote seco, tinha a mesma cor. E o cabelo também. Muito curto. Ela estava por ali conversando com outros folgados na vida em voz bem alta, mas não consegui apreender o que ela falava. O grupo de meus amigos começou a dispersão e eu os segui, mas não sem antes pegar outra tapioca que eu já tinha engolido bem antes de chegar à esquina. Virando continuamente minha cabeça para continuar a ver a mulher magra até que ela simplesmente desapareceu do meu foco visual.
A partir daí ela surgia em todos os lugares aonde íamos. Na sorveteria, onde ela pegou em meu braço, causando um susto tão grande quando a vi, cara a cara, que meu sorvete caiu no chão. O dono da sorveteria com um rápido vai andando a expulsou do estabelecimento e eu comprei outro sorvete. Ela se dirigiu para a pracinha em frente e eu fui me afastando aos poucos, olhando para ela. E ela para mim. Aonde íamos, ela aparecia do nada. E quando aparecia eu ficava tão angustiada que buscava correndo algo para comer. Mal eu a via a fome surgia. Uma estranha fome. Minha boca secava, meu estômago apertava e eu corria em busca de alimento o que começou a causar espanto em meus companheiros. Comi panquecas. Novas tapiocas. Doces que ia encontrando em barraquinhas. Era uma coisa de louco. A certa altura, lá no alto da cidade, eu de repente dei um grito que espantou a todos. Eu tive uma visão que logo desapareceu, mas eu não podia contar aos meus amigos. Falei, ainda trêmula, que me assustara com uma ave, um urubu talvez. Mas não foi isso. Eu a vi ao longe, pairando no ar, tão magra quanto um mastro de navio. Quem iria acreditar se nem eu mesmo acreditava. Lembrei de uma visão que tive quando era menina, quanto caminhando pela linha do trem que margeava um campo de futebol, vi, caminhando do outro lado, uma girafa. E o mais espantoso é que quanto mais a girafa andava mais o seu pescoço crescia. Magro, magro, como a mulher magra. É claro, ninguém acreditou em mim quando contei, nem mesmo a minha avó que vivia me contando histórias fantásticas. Bastante encabulada eu aceitei a sugestão de voltar para Recife, afinal já anoitecia. Voltamos os quatro, eu, o cientista francês e meus amigos. O filho de meus amigos, sua mulher e a filhinha deles ficaram. No carro eu fui atrás com minha amiga, ela me contanto histórias e na frente os cientistas, o francês e o pernambucano. Eu me esforçava para prestar atenção na conversa dos dois, em inglês, e entabulava também uma conversa com minha amiga. Eu não queria deixar a minha mente vagar, mas não conseguia tirar da minha cabeça a imagem daquele varapau. Ora eu olhava para os lados e lá estava ela, correndo junto com o carro. Ora era parava em frente do carro e eu tinha que segurar meu grito de susto. Em certo momento percebi que o cientista francês nos convidava para encerrar a noite em um bar perto de seu Hotel e também da casa de meus amigos. Todos concordamos, eu em português é claro e me distraí de tal forma que aquela imagem saiu logo de minha cabeça. Já no bar, a coisa mudou de figura porque ela ficou do lado de fora da varanda em que estávamos olhando para mim com uma cara de fome tão grande que me levou a começar a comer de uma forma avassaladora. Escondidinho de carne seca. Caldo de aipim. Bolinho de bacalhau. E eu não parava mais. Comia e bebia caipirinha acompanhando o cientista francês. Só na bebida é claro porque eles já haviam parado de beber fazia tempo. Mas bastava eu olhar para fora e ver a mulher magra que eu pedia mais alguma coisa. Até que ela olhou para mim, deu uma banana e se virando caminhou em direção ao mar. E enquanto caminhava ela ia crescendo cada vez mais até virar uma sombra. Foi aí que eu, geralmente calada, comecei a falar feito uma maritaca. Em inglês. E eu nem percebi. De repente, após um tempo bem razoável, minha amiga rindo, me perguntou: Pia, porque você ficou a semana inteira calada e agora fala inglês como se soubesse. E bem? Eu não soube responder porque não entendi a pergunta. Pedi a ela que a refizesse, em inglês. Foi aí que ela se assustou e resolveu me levar para casa. Fomos caminhando pela orla e, por Deus, eu não conseguia nem ao menos pensar em português. E quando acordei no outro dia, o sol batendo em minha cara, acordei pensando em inglês. Só depois que tomei um bom banho as coisas voltaram ao normal. Graças a Deus.