Alguém para amar
Em uma lanchonete, um homem e um garoto, próximos à janela, esperavam calados o pedido. O olhar distante do menino atravessava a rua e se fixava em um cachorro que insistia em lamber vagarosamente algo no meio das patas traseiras. O homem tentou chamar a atenção mencionando que nas manhãs de domingo poucos costumavam transitar pela rua tão cedo. E perguntou novamente ao menino se realmente não desejava comer nada. O garoto olhou para baixo, tímido. É que não quero ouvir a sua barriga reclamando de fome depois, insistiu. Mas o garoto era teimoso, e insistiu em manter como resposta o cabisbaixo silêncio. Contudo, desviou os olhinhos para a mesa quando a garçonete colocou o xis beicon, ketchup e maionese, o copo de suco de laranja com canudo e dois guardanapos que o homem havia pedido. Ela ouviu um não quando perguntou se desejavam mais alguma coisa e percebeu que o homem parecia deslocado na presença do garoto. Lembrou que algo naquela cena não lhe era estranho. Claro, concluiu, já vira aquilo antes, ou imaginara ter visto, quando levou o filho passar o primeiro final de semana com o pai, o canalha do ex-marido. É cruel fazer uma criança aprender a gostar de um estranho, mas mais cruel seria o pequeno crescer sem conhecer o crápula que o pai era. Fantasiar um pai herói poderia relegá-la o papel de vilã. Mas o crápula era o vilão. E esse aí deveria ser outro. Pobre garoto, resmungou, enquanto voltava à cozinha. O homem comia e olhava para o garoto que olhava o homem comer. Com a boca cheia, deixando à mostra pedaços de alface e ovo, o homem disse que a situação já estava chata, afinal, eles precisavam chegar a um acordo. Eu te amo garoto (o garoto tremia) e vou cuidar de você a partir de agora, enfatizou, antes de fazer barulho chupando um gole pelo canudo para empurrar o que mastigava. Pense no quanto vamos nos divertir a partir de agora, me conte tudo o que a sua mãe não te deixa fazer e será a primeira coisa que nós faremos hoje. Quer ir ao cinema, ao shopping, ao circo, o quê? Vamos menino, diz alguma coisa. Hoje estamos por sua conta. Eu prometo que vamos nos divertir muito. O garoto deu um suspiro mudo, mas cheio de palavras. Qualquer observador mais atento diria que era triste, sem esperança, cansado, como se não ligasse para mais nada que acontecesse dali pra frente na sua curta passagem pela vida. Uma lágrima esboçou nascer enquanto o homem gesticulava pedindo mais um suco, mas o menino apenas fungou. E foi ao erguer os olhos úmidos para encarar com desprezo o homem, pois raiva e medo já não tinha mais, que o menino viu os homens armados entrando de repente, gritando polícia e mandando ninguém se mexer. A garçonete sabia que tinha visto o menino antes, e só mais tarde percebeu que fora duas noites atrás, no intervalo da novela. Nota de desaparecimento. O dedo gordo tremia ao fazer a ligação pressionando as três teclas da cavalaria. O homem, parado, olhava o garoto, buscando uma cumplicidade inexistente, suplicando para que o garoto dissesse que estava bem, que se divertia mais com ele que com os pais de verdade. Mas o menino já havia corrido para longe. Ao ser algemado e conduzido até a viatura - julgado por olhares curiosos que segundos antes perguntavam o motivo da confusão - virou para o menino pela última vez e mexeu os lábios pronunciando três palavras inaudíveis, mas que o garoto sabia de cor, e que o faziam tremer cada vez que as ouvia.