Exterminador do verde

Por vários anos, vivi como cigano em São Paulo. Cheguei a morar em mais de uma dezena de lugares e bairros diferentes. Passei por pensões, quartos alugados e repúblicas de estudante. Num destes locais, conheci um sujeito muito bacana, cujo nome infelizmente o tempo apagou de minha memória, junto com outras tantas lembranças do passado. Chamarei este amigo de Válter, porque é o primeiro nome que à minha cabeça vem ao me lembrar dele. Pois bem, vamos lá.

Mudei-me para um quarto alugado no apartamento de uma mulher estranha, que bebia vodka o dia todo. O prédio ficava na Avenida Nove de Julho, perto da Praça 14 Bis, na Bela Vista. Se quiser chamar o bairro de Bixiga, também pode. Uma semana depois, chegou meu companheiro de quarto. Como eu era jovem na época, vinte e poucos anos, achei o Válter velho. Mas era puro preconceito meu. Devia estar entre os 45 e 50 anos.

Ele trabalhava como autônomo, numa função inédita para mim: informante comercial. Acho que o nome era esse ou algo próximo. Ele verificava a idoneidade financeira de empresas e pessoas em associações comerciais. Ou seja. Descobria, para seu cliente, se o dito cujo era ou não bom pagador. Separado há anos, namorava uma caixa de banco.

Valter era tranqüilo, inteligente, não tinha muitos vícios, só gostava de tomar cerveja. Não, roncava, nem fazia barulho ao dormir. Um bom colega de quarto. A gente só não conseguia sair juntos no fim de semana porque ele ia namorar no sábado e voltava apenas no domingo.

O nosso papo preferido era falar da dona do apartamento, que enchia a cara e se fechava em seu quarto. Às vezes, quando a gente se cruzava com ela, sentia o cheiro da vodka sair através dos poros delas. Sua idade, incerta, algo entre 40 e 60 anos. Pelos traços, parecia ter sido bonita quando mais jovem. Parecia sempre angustiada, de mal com o mundo e pouco falava com a gente.

Um belo dia, Válter me mostrou algo curioso naquele apartamento, onde tudo parecia ser estranho. Uma plantinha, que parecia broto de feijão, nasceu no rodapé da sala do apartamento, num buraquinho entre dois tacos. Na época, era muito comum o uso de tacos de madeira nos pisos de casas e apartamentos. Hoje, não mais. Foram substituídos pelos produtos cerâmicos.

Capricho da natureza, a plantinha crescia. Certa feita, até notei que havia algumas gotas de água perto dela. Perguntei ao Válter se ele regava a coisinha verde. Ele me garantiu que não. Devia ser obra da dona do apartamento, disse-me.

Semanas depois, a planta alcançava quase 20 centímetros e muito viçosa. Só que a gente ainda não conseguia definir que planta era aquela. Foi então que o Válter teve uma idéia. “Já sei. Deve ser um pé de maconha”, disse. Eu duvidei que fosse, mesmo sem nunca ter visto um pé da canabis.

Eu e Válter pouco ou nada sabíamos sobre maconha. Nenhum dos dois jamais tinha fumado um baseado. Mas meu amigo achava que a dona do apartamento, além de beberrona, também puxava um dois. Essa era a expressão que as pessoas usavam na época para dizer que fumavam maconha: puxar ou dar um dois. Havia até um curioso trocadilho no meio estudantil e malandro daqueles tempos: “Se o Leonardo Da Vinci, porque eu não posso dar um dois?”.

Curioso, Válter trouxe para casa um livro de plantas medicinais, onde a maconha, por incrível que pareça, estava incluída. Mas a ilustração do livro era tão mal-feita que a gente não conseguiu comparar com a planta do rodapé. E ficou por isso mesmo. Resolvemos deixar a verdinha em paz. Pelo menos assim pensei.

Fiquei fora por três dias, num feriadão, numa visita à casa de meu irmão no interior. Quando voltei, num domingo à noite, a plantinha estava murcha, caída. Assim que o Válter chegou de seu encontro com a namorada, perguntei-lhe o que ocorrera com a plantinha do rodapé. “Vamos lá fora tomar uma cerveja que lhe conto o que sucedeu.”

Valter jogara herbicida na coitadinha. “Foi muita maldade sua, meu amigo”, comentei. Ele reconheceu o erro, mas já era tarde. Não havia mais salvação para a plantinha. Disse para ele que seria menos cruel arrancar a infeliz do rodapé, com uma só puxada, do que borrifar veneno em cima dela e matá-la aos poucos. “Fui compelido por um desejo irresistível de eliminar a coitada”, justificou Valter.

No dia seguinte, a planta não estava mais no local. A dona do apartamento havia retirado a moribunda dali, sem reclamar ou comentar nada com nenhum de nós.

Semanas depois, Valter resolveu juntar seus trapos com a caixa de banco e fiquei sozinho no quarto por alguns dias, até me arranjar e também deixar o sombrio prédio da Nove de Julho. Consegui vaga numa casa de estudantes na Aclimação e para lá me mudei.

Uma bagunça completa minha nova residência. Para morar lá era necessário comprovar vínculo com alguma escola de nível superior ou cursinho. Era público universitário. No entanto, o que menos os moradores faziam era estudar. Um bando de vagabundos. Alguns só tinham ido à sua escola uma vez no ano, para fazer matrícula e pegar o atestado de estudante. Como eu trabalhava o dia todo e estudava à noite, só usava a casa para dormir. Assim, consegui ficar seis meses lá. Depois me mudei novamente, novamente, novamente...

Um dos meus locais preferidos para passear nas noites de sábado sempre foi o Bixiga, hábito que adquiri quando morei no apartamento da Nove de Julho.

Num boteco do Bixiga, certa noite de sábado, me encontrei com o Válter, quase dois anos depois. Ele tinha se separado da companheira havia alguns meses e morava num quarto alugado no Largo do Arouche. Convidou-me para ir com ele. No entanto, eu estava bem instalado na Vila Mariana, no apartamento de outro amigo, colega de faculdade, e não desejava voltar a um quarto alugado, mesmo que o companheiro fosse alguém de confiança, como o Válter.

A união com a caixa de banco não rendeu o que ele esperava. O ninho deles, na verdade o apartamento era dela, ficava na Casa Verde, perto do Campo de Marte. Fui lá apenas uma vez. Coitado, Válter gostava muito dela e queria sossegar na vida, com sua companheira. Deixar de ser cigano e errante. Mas não deu certo.

Conversamos durante horas no boteco, enquanto enchíamos a cara de cerveja e comíamos franco à passarinho. Meu amigo e sua companheira tinham discutido seriamente e resolvido se separar. Valter nem lembrava mais o motivo. Na verdade, havia meses que os dois tinham mais horas de discussão que de cama. O que mais me impressionou, no entanto, foi a vingança que ele impôs à sua ex depois da separação. No dia em que deixou o apartamento, enquanto ela trabalhava, ele borrifou herbicida em todas as plantas. Nem a rara orquídea lilás, comprada num leilão, escapou do “planticídio”.

“Valter, você é um verdadeiro serial killer verde”, brinquei. “Se os ecologistas descobrir seus crimes, você será execrado em praça pública.” Naquela época, início dos anos oitenta, o movimento ecológico ainda engatinhava no mundo e no Brasil, então, era encarado como frescura de jovens da classe média.

Já passava da meia-noite, quando, cambaleantes, deixamos o bar e nos despedimos. Nunca mais vi o Válter. Hoje, mais de vinte anos depois, ainda me lembro dele sempre que rego minhas plantas em casa. Espero que o Green Peace não o tenha descoberto.