GRILAGEM - CAPÍTULO II

Um nada, a roça. Não mais de três tarefas de cercas de ramo entrançado no chão da baixa. Um quintal, comparada com a propriedade do coronel Leopoldino, que possuía um bocado de cercados, cada qual maior, cada qual melhor, madeira de lei e arame farpado, cerconas de onze fios bem esticados e bem grampeados.

Escritura não tinha, documento nenhum. Nem precisava. Bem dez anos que construira o cercado naquelas terras sem dono e ali montara o seu rancho. Seus eram o chão, a casa, o cercado, o pequeno tanque e a cacimba. Trabalhara muito, sozinho e Deus, para levantar o seu lugarzinho. Tudo era seu, na ocupação de terras devolutas do Estado, assim lhe dissera o Escrivão de Paz na oportunidade em que lhe pediu a escritura. Não podia, ele, escrivão, fornecer a escritura. Só requerendo o usucapião ao juiz por meio de advogado. Aí, sim, este autorizava. E se lhe faltava dinheiro para advogado, como fazia? Tinha nada não, o direito era seu, ninguém ia bulir consigo. Era bom requerer, seguro morreu de velho, desconfiado ainda vive. Assim que pudesse devia requerer.

Quando deixou a casa do coronel Leopoldino, por morte deste, ia para os dezesseis anos de idade. Com os filhos do coronel, que moravam na capital, não se dava, apenas sabia quem eram, de virem ali uma vez ou outra. Estudantes, gozando a vida e gastando o dinheiro do velho, só vinham passear. E sempre trazendo amigos para dar trabalho à falecida mãe. Já estava viúvo o coronel quando faleceu. Com o administrador, um cavalo batizado, se dava mal, não queria negócio. Só sabia arranjar encrenca do patrão com os trabalhadores, com ele especialmente. Uma verdadeira implicância. Talvez ciúmes porque o coronel tratava-o com atenção, por causa da finada sua madrinha que lhe dava razão desde menino quando entrou na casa. Depois do falecimento da madrinha, que era sua proteção e não deixava que o maltratassem, as coisas começam a mudar e o administrador o ameaçava constantemente sem motivo nenhum, pura maldade. Ia agüentando por causa do coronel, a quem estimava e que, por sinal, parecia meio broco depois que a esposa se fora, e sempre precisava dele para as coisas de casa. Dera-lhe amparo na oportunidade da fuga do circo. Dera casa e comida, trabalho, um pequeno ganho. Estimava-o, devia-lhe obrigação e não iria deixá-lo. Parecia até que nos últimos tempos o coronel tinha medo do administrador, que praticava desonestidade, ficava com as coisas da fazenda e o patrão via e calava, parecia fazer que não via. E os filhos na capital sem nem virem tomar conhecimento do que o velho sofria nas mãos do seu sabido administrador. Ele é que, vendo essas coisas, só continuou depois da morte da madrinha porque o coronel precisava de sua pessoa, sabia que precisava. Morrendo esse, acabou a obrigação. Nada devia aos filhos, que mal sabiam de sua existência.

Já conhecia os campos da vizinhança, escolheu um chão longe da fazenda, reconhecidamente sem dono e aí montou o seu rancho. Primeiro ficou debaixo da árvore, era verão. Logo construiu um rancho, que aos poucos se transformou em uma pequena casa. Caçava e fabricava corda, vendia os seus produtos na feira de Muricizeiro, a mais próxima, bem oito léguas. Se alimentava de mel e caça, pouco mais ou menos. Construiu o cercado. Quando chovia, se chovia, plantava legumes. Feijão, milho. Essas coisas. Se dava, punha o feijão e o milho em dois caixões de madeira betumados a breu, que ele próprio fizera, misturando-os com areia fina e assim os ensilava para o ano todo. Se não chovia para plantar ou se chovia pouco e perdia a safra, caça não lhe faltava. Um cachorro ia sempre ao seu lado. Um facão, uma faca, machado. Tudo bem na sua vida.

Nesse ano em que o encontramos caçando e cantando a guabiraba, conversando com Peri, a roça estava uma coisa linda. O feijão canivetando, o milho pendoando. Já era um homem casado, pai de filhos. Agora estava na roça, à tardinha, fazendo uma corra. O sol pendia no ocaso.

Enxada correndo no chão, limpando o mato. Guabiraba ouviu um grito. Ergueu a cabeça e lá se encontrava, do lado de fora da cerca, montado em seu cavalo de campo, o administrador da fazenda dos herdeiros do coronel Leopoldino. Chamava-o. Foi atender. Poderia não ir, não lhe devia homenagem, ele que viesse onde estava. Mas, como estava no interior de sua roça e não desejava que o outro entrasse, foi. Encostou a enxada e, por via das dúvidas, pegou a espingarda, da qual não se afastava, caçador que era. Depois de rápidos cumprimentos o homem lhe falou sem rodeio ter recebido ordem do Dr. Juca para despachá-lo daquelas terras, que eram de propriedade dos herdeiros do finado e estes iriam utilizar. Pretendiam ampliar os cercados e precisavam especialmente daquela baixada. Tempo curto, dois, três meses. O suficiente para tirar a colheita e procurar outro lugar, isso mesmo, em consideração à memória dos velhos que o haviam criado quase como filho. Ficava esclarecido que em roda de dez léguas dali não poderia arranchar-se, que as terras tinham dono. Fora daí, não sabia, seria com ele e os outros proprietários. Certo, certo é que todo chão tem dono, nada é devoluto, a não ser o Raso da Catarina onde se comentava que o governo iria despejar o lixo atômico, foi esclarecimento final.

Guabiraba ouviu calado, inchando por dentro, vontade de explodir. Dizer o quê? Perguntar por que não avisaram antes que as terras eram suas? Agora, mais de dez anos ali, sua roça, sua casa e o tanque, a cacimba, a mulher, os filhos, sua vida... E Cassimiro, que escorraçado da fazenda se arranchara ao seu lado e também construira a casinha e o cercado? Dizer o quê? Vontade teve de passar a espingarda. E ela estava na sua mão. Vontade teve. Aquele seu Jacome sempre fora um sujeito mal encarado, ruim com os trabalhadores da fazenda, perseguidor do pobre. Desde moço. E já andava pela idade sem deixar de ser ordinário. Agora, então, que não existia o coronel e os moços mal vinham pegar as rendas, sendo seu Jacome o dono de fato, se aproveitando de tudo, tirando mais para si do que para os patrões... Só espingarda dava jeito naquele peste... E se matasse o desgraçado, como ficavam Sinharinha e os meninos, sem amparo, ele preso ou fugido? Preso nada! Fugido. Conhecia aquilo como a palma de suas mãos. Não havia homem no mundo que lhe pegasse. Mas, os filhos e a mulher ficavam ao desamparo. Inda mais expulsos do seu lugar, sem terem para onde ir, casa, roça, tudo perdido. As terras tinham dono, pertenciam a Juca e os irmãos... Desgraçados, por que não avisaram antes? Agora, dez anos ali, seu trabalho, sua família, sua vida... Cambada de desgraçados! Aquele Dr. Juca, sempre ouvira o coronel reclamar que era um vagabundo, estava na capital só farreando e esperdiçando o seu dinheiro, não queria nada com obrigação. Se fez doutor, herdou a propriedade, ficou rico com o suor do velho e dos trabalhadores explorados, foi gente. Dono de dez léguas em roda... desgraçado! Era outro que merecia bala. Nem ali vinha! Só o Tinhoso podia ser pior que aquelas disgramas. Duas disgramas, Juca e seu Jacome, duas pestes, dois cães-cochos. Ora, não diziam toda vida que aquelas terras eram devolutas do governo? O escrivão de paz mesmo não lhe falara isso? Como é que agora aparecida dono? Esse negócio não estava direito. Alguma coisa... Isso é safadeza, mastigava o pensamento, é safadeza!

Cabeça baixa, vontade de matar, ímpetos de acabar com todo mundo, botou a espingarda nas costas e saiu sem dar resposta ao administrador, largou a roça e foi para casa. Tão diferente ia de todos os dias, da vida toda, que Sinharinha logo notou.

- Qué qui tem, Gabe, aconteceu alguma coisa ruim? Você tá demudado... Qué qui seu Jacome queria com ocê qui passou aqui te procurando, preguntando onde tu tava?

- Nada não, Sarinha, oxente! Pra cunversá. Deu boa tarde, perguntou pela roça e só. Ia passando e parou pra olha a roça. Diz qui tá munto bonita.

- Home, oi essa histora! Sua cara num tá a de todo dia. E esse sujeito nunca foi de falá de bons modo, preguntá pur roça. Diz logo, home de Deus, disimbucha! Num era cum ocê qui aquele cão ia cunversá cum agrado.

- Nada não, oxente!

Não disse nada à companheira. Para quê? Alarmar? Pôr mais uma amargura na cabeça de quem já tinha tantas, causar medo à mulher, por natureza medrosa, como quase toda mulher? Não, não diria. Dia desses iria à rua falar com o Dr. Juiz. Bem que podia ter ido antes, na ocasião que falou com o escrivão. Tinha os seus direitos, com certeza tinha. Não podia ser assim não. Morava no seu rancho há mais de dez anos. Fora, a bem dizer, o descobridor da baixa, onde os outros passavam e nem olhavam, não davam importância, sem dúvida achavam que não servia pra nada. Fizera cercas, tanque, cacimba, casa, tudo. Era dono. Em nenhum tempo ouvira dizer que aquele chão fosse da fazenda e que esta possuía dez léguas em volta. Sempre soube que as terras eram do governo, quem chegasse primeiro e ocupasse, passava a ser o dono. O escrivão de paz mesmo lhe disse isso. Precisava documento não, ele falou, era dono, ninguém o incomodaria.

Agora o sujeito chega e diz que as terras são da fazenda e manda-o embora perdendo tudo que fez em dez anos! O Dr. Juca mora na capital, não vem nem cá, nunca viu essas terras, não mandou nem ao menos cercar um pedaço, plantar uma coisa, zelar nem nada e quando acaba vem o vaqueiro dizer que ele é dono, tudo é seu? E os que trabalham? Os que ocupam, trabalham, moram, vivem da terra ficam com quê? Pra onde vão? Deus fez as terras pra eles, que nem vêm cá e não deixou nada pros pobres? Ah, não! Ia ao Dr. Juiz e daí não saía, só morto. Não diz que juiz, é a lei e que a lei é igual pros ricos e pros pobres? Ia ao Dr. Juiz, se ele não resolvesse, se não lhe desse o seu direito, então haveriam de tirar dali os seus pedaços. Só morto e matando saía. Não ia abandonar os seus direitos e sair de rabo entre as pernas para morrer de fome adiante com a mulher e os filhos. Morrer, morrer logo, brigando como homem! Ora que diabo! Com pouco não podia caçar no mato, não podia tirar caroá, madeira, nada. Os matos iam ter dono... Sujeitos disgramados! Ah, não! O caga-mole do seu Jacome vai se ver comigo, eu mostro uma coisa!

Bem que vira, naqueles dias, uns homens com uns aparelhos, medindo chão na distância da caatinga muito longe, e pondo marcos aqui e ali. Não perguntou de que se tratava, pois não lhe interessavam as coisas alheias. E nem eram alheias, eram suas. Devia ser que estavam medindo e marcando as dez léguas... Meu Deus do Céu, pra que tanta terra na mão de um só! Fazer o quê, se o gado da fazenda se criava solto no campo e as mangas eram suficientes para a separação das crias e a reserva de pasto? Depois, porque tão distante da fazenda, onde o gado nem vinha? Ali, só bicho do mato e o magotinho de criação seu e de Cassimiro e mais nenhum. Longe, longe dos pastos da fazenda. Para que tanta na mão de um só, tantos precisando? Que lei do cão era essa? Aquela porção de gente moradora nas dez léguas, tudo igual a ele? Tudo pra ser encorraçado? É, sem dúvida ia ser todo mundo, não ficava ninguém. E onde iriam morrer? Nos matos como bicho bruto todo mundo? Ou seriam caçados como bicho bruto, mortos pra tirar a pele e fazer camurça? Lei só existe pros ricos serem donos das coisas? Pros pobres não existe lei, é o pau? Lei do cão, essa!

Ia mostrar aqueles pestes com quantos paus se faz uma cangalha... Não, não! Ia mostrar com quantos chumbos se faz um defunto. Espingarda, tinha. Chumbo, espoleta, pólvora, comprava, não era proibido. Cassimiro tinha dois filhos homens. Eram quatro. Todos de espingarda e boa pontaria de caçar. Se eles topassem... Já ouvira falar que o velho Ursulino e os filhos também estavam sendo chamados a deixarem o seu sítio. E ali era sitão! Antigo, do tempo do pai dele, segundo ouvia dizer. Uns sujeitos desconhecidos se diziam representantes dos gringos do estrangeiro e andavam munidos de máquinas de espiar longe, medindo suas terras e até um deles havia feito mangação do velho, um homem de mais de oitenta anos, chamando-o de vovô e mandando que fosse cantar noutra freguesia, desocupasse o lugar, que tinha dono. Conversasse papo não, fosse cantar noutra freguesia.

Disgramados! Ia ao juiz, isso ia, defender o que era seu, na lei. Se falhasse, defendia na espingarda, ah, defendia! Precisava conversar com Zeca Ursulino, seu amigo, com quem estava de trato para cortar madeira. Traçarem idéia. Quem não defende o que é seu, não é dono. E ele defenderia. Era dono, defenderia, não ia ceder os seus direitos. Disgramados! Mostrava! Sair de suas terras com o rabo entre as pernas, nunca!