O monstro do Rio Tietê
Capítulo I
A sexta-feira era chuvosa desde as primeiras horas da manhã. Pancadas torrenciais vertiam dos céus da cidade, dando voltas no vento gélido que só fazia fomentar o caos e o tumulto. Casas e edifícios destelharam-se e ficaram à mercê das intempéries, tanto mais, com suas vidraças estilhaçadas. Morros despencaram sobre barracos humildes construídos nas periferias apartadas da civilização. Ruas ficaram inundadas com águas caídas das nuvens, numa mistura barrenta com os lixos e dejetos brotados dos esgotos da população; tudo invadindo casas e estabelecimentos comerciais. Bairros inteiros ilhados e sem energia elétrica. Duzentos e oitenta e três quilômetros de congestionamentos pelas vias da metrópole: recorde histórico! São Paulo, famosa por seus gigantismos, sucumbia à inércia paquidérmica de não saber como defender-se da vingança da natureza aviltada.
Rasgando a cidade, o Rio Tietê, sulco que outrora fora esculpido naturalmente pelo viajar de águas puras, agora, arregaçado por alargamentos e aprofundamentos humanos, tinha bem maior capacidade de vazão, porém, da imundícia que lhe boiava em milhões de metros cúbicos. As chuvas avolumaram-lhe o conteúdo fétido e nojento que, por fim, transbordava de seu leito corrompido pela insensatez humana.
A natureza, que gera e sustenta a vida, quando ofendida e maltratada, responde com mazelas e morte. E anjos do mal, hábeis manipuladores das energias naturais, bem sabem como transmutá-las a partir de suas várias espécies, mesmo aquelas geradas cumulativamente pela vileza dos seres humanos. Ódio, cobiça, inveja, rancor, crueldade... ingredientes de uma receita sem fim que, se acumulados em grande quantidade ao longo do tempo, fermentam a podridão humana até o ponto de dar vida a entidades terrivelmente maléficas. Depois de milhares de anos sem reações desse tipo, demônios de escalões insondáveis na hierarquia das sombras, escolheram São Paulo para espalhar seus atos de mórbido prazer.
Nas vias marginais do Rio Tietê, maior passagem de tráfego de veículos do planeta, o orgulho da raça humana estava batido e posto fora de combate. Poucas manifestações humanas são mais significativas como exemplo de sua diversidade que o trânsito numa metrópole. Automóveis de luxo e carros populares dividem espaço entre caminhões e utilitários com suas cargas que alimentam o consumo desenfreado. À noite, o espetáculo das luzes coloridas de lanternas e faróis formava um quadro dantesco de um pulsar atônito e impotente de paralisia. Por fora dos veículos, luzes molhadas para iluminar caminhos por onde nada nem ninguém poderia transitar. Por dentro, rádios anunciando o caos e convocando hipocritamente a todos para uma serenidade impossível.
Sob a Ponte da Freguesia do Ó, elo de ligação entre as zonas norte e oeste, o lixo boiando nas águas, manipulado por aquelas forças diabólicas, começou a aglutinar-se. Tralhas de materiais não degradáveis, fezes de ratos, elementos tóxicos de toda espécie, tudo isso e muito mais da sujeira humana, passou a ganhar forma e vida. Um humanóide cujo corpo foi forjado pela compactação do lixo e que, uma vez acabado em sua forma, acolheu a alma nefasta de Adzukrimm, entidade maligna escolhida a dedo pelo próprio demônio para perpetrar o mal sobre a face da Terra.
A figura grotesca do ser maléfico ali nascido aninhou-se nas margens do Tietê, sob os pilares da ponte. Assumindo forma física, Adzukrimm tateou-se para constatar o pleno controle de seu novo envoltório. Vendo-se apto ao movimento, soltou gargalhada funesta que ecoou pelos ares da região. Sua jornada de horror, destruição e morte estava por começar. São Paulo e o mundo nunca mais seriam os mesmos!
Capítulo II
A grotesca figura de Adzukrimm conformava-se numa massa verde e gosmenta, que deixava um rastro pegajoso por onde passava. Esgueirando-se sob os pilares da ponte, a criatura saltou por entre os carros retidos no congestionamento, causando pavor entre os circunstantes que, agora indiferentes ao conforto de seus veículos, saltavam de seus assentos e corriam para todos os lados entre gritos e choros alucinados. Adzukrimm gargalhava tenebrosamente, espalhando um hálito que expelia o enxofre do próprio inferno.
Ele saiu a caminhar enquanto divertia-se com a confusão. Um incauto fugitivo escorregou e caiu a poucos metros da besta que, sem piedade, o levantou do chão com apenas um dos braços e decepou-lhe com a boca uma das pernas. Gritando de dor e horror, a vítima clamava por socorro o que só fazia com que cada vez mais a multidão se afastasse. Desfalecido em sua mão, o pobre infeliz foi lançado num golpe a quase setenta metros de distância indo cair nas águas putrefatas do Tietê.
Dentro de um dos veículos, uma mãe escondia seu filho agachada no banco de trás. Porém, piedade não é inspiração de demônios. Num único e certeiro golpe, Adzukrimm rasgou o teto do carro e sobre aqueles indefesos despejou um vômito venenoso que os consumiu vivos, derretendo suas carnes.
A esta altura, testemunhas que observavam à distância a horrenda criatura em ação, ligavam desesperadamente de seus telefones celulares convocando a polícia, o corpo de bombeiros, qualquer um que pudesse representar a salvação, naquele instante, onde o juízo já não ditava o controle dos atos de mais ninguém. Tudo em vão. O engarrafamento não permitiria que nenhuma viatura, fosse de que guarnição fosse, pudesse se locomover pela cidade. As chuvas que, agora, tinham aumentado em sua intensidade, obstavam o acesso de helicópteros ao céu. Impossível que viesse alguém em socorro da população aflita que, em sua ignorância, sequer imaginava que contra demônios armas não surtem efeito.
Adzukrimm encetou marcha rápida pela Avenida Inajar de Souza indo em rumo à zona norte da cidade. Naquela direção, sabia ele, encontraria a Serra da Cantareira e, no seio da mata densa haveria de consumar seu desiderato. O medo e o terror que emanavam dos espíritos humanos por onde passava, davam-lhe cada vez mais força. Quanto mais horror causava, tanto mais forte ficava e seus poderes, então, iam ganhando proporções terríveis.
Um grupo de homens formado às pressas num botequim de uma esquina qualquer, sem perceber exatamente o que acontecia, correu em direção à ignóbil criatura, como que se pudessem capturá-lo. Meio bêbados e totalmente estúpidos tentaram formar um cerco. Adzukrimm percebendo o movimento e intenção de seus perseguidores, cessou o passo e aguardou-os. Eles ficaram ali por alguns instantes, olhando aquilo que não sabiam o que era mas que, com certeza, merecia ser abatido. Com paus e pedras ameaçaram o monstro que, com meneios de encantamentos malignos atribui-lhes morte lenta e dolorosa. Paus e pedras vieram ao chão juntamente com mãos e braços que os seguravam, já que os membros desgrudaram-se dos corpos que, um a um, iam caindo em mórbida agonia nas poças de sangue que se formavam pela amputação demoníaca.
Em certo ponto, o monstro enviesou pela Avenida Deputado Emílio Carlos, passando em frente a maternidade e, após, os muros do cemitério. A ironia humana havia colocado ali os dois extremos da existência, lado a lado: nascimento e morte. Durante sua passagem, a força de Adzukrimm já era tanta que num raio de um quilômetro de distância a destruição e o horror se alastravam. Na maternidade, as mães que aguardavam a hora do parto foram expelindo fetos mortos que lhes brotavam podres do ventre. Nos berçários, os bebês foram sendo exterminados, uma a um, pela explosão dos crânios ainda informes. No cemitério ao lado, as covas se abriam e os pedaços de carnes e ossos saltavam de seus depositórios para se espalharem por todos os lados.
Chegando ao Largo do Japonês, já não havia mais viv’alma por perto para testemunhar a passagem do monstro. Corpos caídos por toda parte, destroçados em pedaços ou rasgados ao meio, ladeavam a trilha funesta com o cheiro da morte. Adiante, somente a extensão da Avenida Parada Pinto restava por ser percorrida até que Adzukrimm chegasse a seu destino.
Capítulo III
Já se passava mais de uma hora desde que o monstro brotara do lixo do Tietê. As rádios, por meio de informações de alguns poucos, que conseguiram escapar antes que o bafo do inferno os alcançasse, já divulgavam frenéticas que algo terrível acontecia sem, contudo, esboçar qualquer informação consistente. O que se sabia é que a morte caminhava sob a chuva que caía em São Paulo aquela noite. As autoridades, acostumadas às recomendações de sempre, mandavam avisar que a melhor providência é que os cidadãos permanecessem em suas casas. Mal sabiam que isso implicava em esperar sem reação que o horror lhes tolhesse a vida.
As emissoras de televisão, em plantões informativos, minguavam de imagens para ilustrar as ocorrências. Bizarras aparições surgiam na tela de todo país em rede nacional. Repórteres embaixo de chuva cercados por pedaços de corpos por todo lado, falavam sobre as conseqüências de uma causa que lhes era totalmente desconhecida. Especialistas de toda sorte foram convocados às pressas para participar de debates sobre o que poderia ser o motivo causador daquilo tudo.
Nos templos e igrejas, sacerdotes de todas as crenças convocavam os fiéis a se unirem em orações aos céus, prometendo a segurança como artigo de fé. Patéticos oradores que despejavam suas falsas verdades e que, diante da realidade da existência do mal, ficavam propagando discursos vazios a ouvintes que queriam acreditar em alguma coisa desesperadamente.
Ao largo disso tudo e indiferente ao que acontecia Adzukrimm já podia sentir o cheiro da mata da qual se aproximava. Exatas três horas depois de seu surgimento neste plano infeliz de existência, o monstro chegou a seu destino e se embrenhava na Reserva Florestal. No ponto mais denso, na escuridão da noite tempestuosa, o monstro do Rio Tietê prostrou-se em reverência ao senhor das trevas e conjurou um exército de demônios. A densidade da mata, onde a concentração de forças naturais era mais intensa, favoreceu a perpetração do plano diabólico.
Em outras partes do mundo, outros monstros de igual natureza, tomados por seres maléficos da mesma estirpe maldita de Adzukrimm, surgiam para consumar a destruição total da vida humana no planeta. Enquanto ele, a partir de São Paulo, foi arregimentando seu séqüito de demônios subalternos que se espalharam por todo o Brasil e, depois, América do Sul, em outros pontos do mundo outros tantos monstros foram surgindo, cada um a partir das sujeiras e dejetos locais.
Em poucos dias, quase já não havia mais vida humana no planeta. Alguns poucos ainda se refugiaram em pontos ermos, ao perceber que, quanto mais longe da civilização, tanto mais seguros estariam. Adzukrimm já estava, a esta altura, pronto para sair em perseguição das últimas almas infelizes que remanesciam na face da Terra. Entretanto, nesse ponto, ele foi convocado à presença de Satã.
- Adzukrimm, fizeste um bom trabalho e hás de ser recompensado por tua lealdade. Contudo, cessa tua jornada e recolhe teu exército. Retornem todos a seus esconderijos eternos até que sejam, novamente, convocados.
- Mas, mestre, teu plano já está quase totalmente consumado. Deixa-me terminar o que comecei.
- Não! De onde tiraste a idéia de que tal plano foi meu? Poupa alguns para que possam povoar novamente a Terra. Esse é o limite que me foi imposto nessa tarefa.
Dissolveu-se instantaneamente o monstro do Rio Tietê e com ele sua legião de demônios gosmentos. Agora, no cenário de horror em que transformara-se a Terra, nova história deveria ser escrita pelos homens. Uma outra civilização deveria perceber que a morte serviria de lembrete e adubo para que germinasse um novo modo de ser.
Se os homens errassem de novo, sempre haveria Adzukrimm para pôr tudo em seus devidos lugares.