Melinda

PRRRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIII!!

Soava a sirene indicando o reinício das aulas. Os alunos, até então espalhados pelo enorme gramado que circunda o prédio principal da escola, sentados em pequenos e barulhentos grupos que conversavam animadamente, encontravam-se agora reunidos como uma desorganizada multidão que marchava descompassada em direção ao interior da escola. A alegria gerada pelo clima de verão e o ano letivo prestes a acabar inundavam o ambiente, sendo expressos pelos gritos eufóricos, as gargalhadas e os sorrisos exacerbados dos inúmeros rapazes e moças que conversavam. Todos extravasando sua alegria. Todos, exceto um.

Aquele jovem franzino, de cabelos curtos, loiros e sem brilho. Que possuia aquele ar de monotonia e uma aparência tristonha, sempre cabisbaixo. Pouquíssimos eram aqueles que já haviam trocado duas ou três palavras com ele. Um número imensamente menor era o daqueles que conheciam-no. Alguns de seus colegas de classe até sabiam seu nome: Lucas. Porém, muito mais do que isso, não sabiam. Ninguém sabia de onde viera ou há quanto tempo estava ali. Muitos diziam ter tido-o como colega em suas séries iniciais, outros batiam o pé e garantiam que ele teria sido transferido recentemente para a escola. O fato é que ninguém realmente conhecia-o. Sabiam que estava em seu último ano na escola e que era dono de uma inteligência invejável. De resto, só lendas.

Todos subiam rapidamente as escadarias e corriam para suas respectivas salas de aula, conversando em brincando. Todos, exceto Lucas, que ficara para trás, como sempre. Ele vinha caminhando lentamente, cabeça baixa, o punho direito cerrado sobre um pequeno pedaço de papel, já bastante amassado. Sentia as dobras asperas do papel roçando sua pele úmida de suor. Seu coração batia acelerado, suas veias repletas da surpresa que tomara-lhe instantes antes. A ansiedade paralisando-lhe as pernas. Sentia constantes calafrios, parecia alguém adoentado. Uma gota gélida de suor escorreu-lhe pela têmpora, percorrendo todo o contorno de seu rosto. O jovem pode sentir o percurso feito pelo suor, tal era o estado de acuidade de seus sentidos. Sua mente, funcionando em ritmo frenético, voava entre uma imagem e outra. Então ele fechou os olhos. Buscou focar-se em apenas um pensamento. Não, não apenas um pensamento: uma lembrança. Sentiu-se reconfortado ao reviver o momento. Seu coração voltava lentamente ao ritmo normal. Suas pernas já podiam mover-se novamente. Acalmara-se. Um sorriso mínimo crispou-lhe os lábios, modificando levemente sua expressão enfadada. Finalmente ele voltou a andar. Pousou a mão sobre a maçaneta da porta e inclinou-se levemente, pronto para o que sabia ser a sequência natural dos eventos:

- Atrasado novamente, Sr. Moreira! - O jovem sequer encarou a professora que ralhava com ele. Ela, uma mulher de meia-idade e expressão severa, continuou encarando-o, esperando por uma resposta. Como de costume, ele manteve-se em silêncio, apenas esperando o desfecho da contenda. - E para variar, nada tens a dizer? Vá para o seu assento rápido, antes que eu me irrite de verdade. O jovem fechou a porta atrás de si e caminhou rapidamente por entre as carteiras, tencionando sentar na sua respectiva. Porém, no meio do caminho, foi surpreendido por uma jovem que erguera-se de sua classe. Sem tempo hábil para uma reação, acabou trombando levemente com ela.

- Olha por onde anda, babaca! - A jovem, possuidora de magníficos olhos verdes, sequer encarou-o. Correu até a classe de uma amiga e pôs-se a fofocar sobre assuntos diversos.

- Melinda, volte já para o seu lugar! - A professora voltava-se para a garota, e tinha-a agora como alvo de suas casmurrices. A jovem murmurou um "sim senhora" entre dentes e voltou rapidamente para sua classe, sentando-se em seguida. No fundo da sala, Lucas sentava-se também, olhando fixamente para a mão direita, agora vazia. Passava os dedos pela palma, como que buscando algum vestígio do que até então estivesse ali. Novamente, um sorriso perpassou seu semblante.

O restante da aula passou repleto de tumultos. Os alunos, incontroláveis devido a iminência das férias de verão e ao término de sua vida escolar, saiam de seus lugares a todo momento, impossibilitando qualquer tentativa da professora de ministrar uma aula séria. Por fim, a mestra desistiu da contenda e deixou que a anarquia reinasse. Quando finalmente a sirene soou indicando o término da aula, ocorreu a explosão de euforia que os alunos vinham prevendo. Todos delirantes, corriam e festejavam pelos corredores, rumo as incertezas da vida adulta. Ou, como sempre, quase todos. Lucas, lá do fundo da sala, continuava em seu ritmo tranquilo. A professora, que parara à porta para despedir-se de seus agora ex-alunos, notou a demora do rapaz e foi até ele.

- Parabéns, rapaz. Devo lhe dizer que foste de longe o melhor aluno que tive. - O jovem, sem erguer os olhos de sua bolsa, murmurou "Obrigado" e continuou sua tarefa. Vendo que não conseguiria resposta melhor do que aquela, a professora resolveu finalizar suas tentativas. - Desejo-lhe toda a sorte do mundo. Você tem um futuro promissor em suas mãos, basta não fazer nenhuma bobagem. Eu confio em você.

E em um gesto completamente incoerente com a imagem que mantinha, a professora deu-lhe alguns tapinhas no ombro. Lucas acenou com a cabeça e seguiu seu caminho em direção a casa.

Chegando a rua, viu todos aqueles com quem conviveu durante tanto tempo espalhando-se, cada um tomando seu caminho. Imaginou-se também seguindo seu caminho. Imediatamente, aquela lembrança voltou-lhe à mente. Fechou os olhos, tentando mais uma vez reviver o momento. Seus tênis surrados guiavam-no pelo caminho cotidiano, enquanto sua mente viajava muito além daquilo visível.

Após uma longa e imaginativa caminhada, o jovem chegou em casa. Cruzou o portal de entrada e parou em frente à porta, enquanto procurava nos bolsos pelo molho de chaves. Encontrando-o, abriu a porta e deslizou-a lentamente, tentando ser o mais sutíl possível. Fechou-a às suas costas e virou-se para o interior da casa. Descalçou com cuidado os tênis sujos, largando-os em seguida em uma sapateira que havia no local. Seu par de calçados era o único ali. Caminhou até a cozinha, serviu-se com alguns biscoitos e um copo de leite e seguiu o trajeto até seu quarto. Lá chegando, lançou sua mochila para um lado, largou a "refeição" sobre a escrivaninha e jogou-se na cama, mentalmente exausto. Seus olhos teimavam em fechar-se, porém cada vez que o faziam, seu cérebro incendiava-se em um turbilhão de imagens, suposições e pensamentos. Durante trinta minutos, mais ou menos, durou esta sucessão de pensamentos e afins, até que caiu no sono.

Acordou somente quando ouviu os passos barulhentos na escada. Sabia de quem eram. Ouviu os passos se aproximarem e a porta de seu quarto ser escancarada violentamente. Virou o rosto de leve, apenas para descobrir um olho e poder vislumbrar sua mãe parada à porta. A eterna expressão de desgosto que lhe reservava a marcar-lhe a face.

- Dormindo a essa hora, guri? Não tem vergonha? - Sua voz rouca, que quando criança assustava-o como trovoadas, soava alta, como se com o objetivo de alardear os vizinhos. - Enfim terminou essa incomodação chamada escola? Ótimo, agora você pode procurar um emprego e ajudar a pôr dinheiro dentro de casa. - O jovem voltou a cobrir o rosto, sem responder nada. Seu silêncio era a resposta habitual para os comentários de sua mãe. Ela, conhecendo o filho, percebeu que não haveria mais diálogo. - E não adianta se fingir de morto. Seu pai, que Deus o tenha, talvez achasse engraçado, mas para mim não há nada de bonito em ter um jovem vagabundo dentro de casa. Amanhã eu quero vê-lo dando um jeito na vida!

A senhora virou-se e bateu estrondosamente a porta ao sair, não sem antes murmurar mais alguns descontentamentos acerca do filho. O jovem sentiu-se irritado por um instante. Enterrou a cabeça no travesseiro que segurava, tentando acalmar-se. Teve mais uma vez de apoiar-se naquela lembrança que vinha dando-lhe força nas últimas horas, para poder controlar-se. Focou a mente na imagem que deseja visualizar. Esboçou um leve sorriso por uns instantes, antes de levantar-se da cama de um pulo. Caminhou até sua escrivaninha e sentou em frente a mesma, começando a comer os biscoitos. Fitou através da janela o céu negro. Voltando-se para a mesa, destacou uma folha de caderno que por ali estava e, com uma caneta recém retirada de seu estojo, começou a escrever um bilhete, com palavras que ensaiara durante toda a tarde. Por fim, segurou a caneta milímetros acima do papel, relutante em escrever três certas palavras. Decidiu-se por escrever. Seria mais sincero de sua parte, apesar de tudo. Dobrou o bilhete e escreveu em seu dorso: "Mãe".

Erguendo-se da cadeira, caminhou até o armário e abriu-o, admirando-o quase vazio, não fosse por uma bolsa abarrotada que jazia em seu assoalho. Retirou a bolsa dali, depositando-a sobre a cama. Mirou seu relógio de pulso. Faltavam trinta minutos para o horário do encontro. Estava na hora de partir. Abriu a porta do quarto e tentou escutar algum ruido que indicasse onde estava sua mãe. Distinguiu o som da televisão da sala de estar em volume moderado. Caminhou até lá, parando de chofre à porta, fitando sua mãe que sentava-se ao sofá. Ela, sentindo a presença do filho, perguntou sem virar o rosto:

- O que foi? - Passados alguns instantes sem resposta, voltou a falar. - Você quer alguma coisa? Ou está aqui só para me importunar? - O jovem nada falou. Caminhou até a mãe e, abaixando-se até ficar a sua altura, beijou-lhe a bochecha. A mulher, assustada com o gesto, nada fez. Lucas ergueu-se e voltou para o quarto. Estava com a mão sobre a maçaneta quando ouviu sua mãe dizer:

- Boa noite meu filho. Durma com Deus. - Algumas lágrimas brotaram em seus olhos, mas foram enxugadas rapidamente. Atravessou o quarto e abriu a janela, sentindo a brisa gélida da noite já alta tocar-lhe a pele. Colocou a bolsa às costas e pulou a janela, indo em direção a rua. Caminhou alguns metros sem olhar para trás, porém não resistiu e obrigou-se a fitar sua casa. Talvez não para sempre, mas por um longo tempo, seria a última vez que veria-a. Mais lágrimas umideceram seus olhos, estas sendo deixadas para que secassem com a brisa noturna. O jovem retomou sua caminhada silenciosa, de cabeça baixa e passos rápidos. Em sua cabeça, milhões de imagens condensavam-se e chocavam-se, causando-lhe confusão e mal-estar. Sentia seu coração oprimido pelo sentimento de saudade. Tinha vontade de voltar atrás com sua escolha, mas sabia que não podia. Apertou o passo e, quase correndo, seguiu seu caminho.

Já havia caminhado bem uns dez minutos quando finalmente vislumbrou seu objetivo. Os inúmeros ônibus estacionados lado-a-lado pareciam convidativos. Ele sentou-se em um banco que havia por ali e pôs-se a esperar.

Faltavam quinze minutos para o tão aguardado momento. Uma explosão de sentimentos enchia seu coração, enquanto uma enxurrada de incertezas inundava sua mente. Sentia vontade de chorar, de gritar, de desistir de tudo, porém sabia que não devia fazer isso.

"Mas porque não devo desistir de tudo?", pensava. A semente da incerteza instalara-se em seu coração e começara a germinar. Parecia-lhe loucura ter embarcado nesta viagem. Pesou prós e contras rapidamente e concluiu que fizera uma bobagem. Decidiu-se por desistir e ir embora. Contudo, suas pernas não queriam obedecer-lhe. Sabia que seu subconsciente não concordava com sua racionalidade covarde. Ergueu os olhos e observou alguns ônibus que dali saiam calmamente, contrariando o estado calamitoso em que se encontrava o interior do seu ser. Pôs-se a batalhar freneticamente contra seus instintos, o medo pulsando em suas artérias, desejoso por ir embora. Lembranças vinham a frente de seus olhos, mas ele tinha a certeza de que eram apenas bobagens. Lembranças de duas crianças que se encontravam em uma praça. Lembranças de dois adolescentes que se reencontravam em uma sala de aula. Lembranças de dois jovens que declaravam-se frente-a-frente nos jardins de uma escola repleta de pessoas. A lembrança de um beijo que recebera momentos antes de ouvir uma sirene insurdecedora. A lembrança de uma promessa que fizera quando criança e que jurara cumprir agora que adulto.

Reviveu em sua mente o momento em que aquela voz suave lhe pedia uma resposta no dia seguinte. Sentiu sua mão refazer o trajeto que fizera naquela manhã, enquanto segurava uma caneta e escrevia um determinado horário em um pedaço de papel. Pôde sentir o afago suave que ela lhe fizera no polegar quando suas mãos se tocaram durante a aula, quando lhe entregara sua resposta.

Sentia tudo isso, mas mesmo assim tinha medo. Não era tão corajoso quanto ela. Não podia enfrentar o mundo como ela estava disposta a fazer. Sentia-se impotente, apenas um verme inofensivo contra todo um mundo ameaçador. Sentia-se incapaz. Não era digno dela.

Estava decidido: partiria agora.

Ergueu-se calmamente do banco, refazendo o caminho que trouxera-o até ali. Dera alguns passos mas parou. Sua mente voltava a lutar contra o medo irracional. "Vou mesmo jogar fora a melhor coisa que já me aconteceu?" Sentiu raiva de si mesmo, por ser tão covarde. Não podia desistir assim. Lutando com todas as forças que tinha, girou nos calcanhares e decidiu-se por voltar para o banco. Foi quando notou mais alguém chegando àquele lugar:

- Lucas. Você veio... - A jovem também portava uma grande bolsa de viagem. Um sorriso magnífico brincou em seus lábios pálidos, enquanto seus olhos verdes fitavam os dele.

- Melinda...

A jovem caminhou até ele. Colocou uma das mãos no bolso da calça, retirando em seguida um par de passagens.

- As primeiras eu já comprei, as próximas são com você! - Ela sorria, mesmo que nervosamente. Lucas ainda fitava seu rosto iluminado de alegria, imaginando se realmente fora verdade que tivera cogitado abandoná-la. - Vamos, o ônibus já deve estar saindo! - Ela sorriu como uma criança prestes a ganhar seu presente de aniversário.

O jovem virou-se e observou a cidade na qual nascera, crescera e vivera até ali. Pensou em todos os momentos que tivera naquele lugar. Pensou em tudo que deixaria para trás.

- Vamos? - O jovem relutara por um instante, porém Melinda aproximou-se dele - Não se preocupe... todos ficarão bem, mesmo sem ter-nos por perto.

- Eu sei... - Respondeu o jovem, com sua voz baixa e calma. - É só que...

- Eu te entendo. Mas confie em mim. Nós seremos felizes juntos... certo? - A jovem terminou de falar erguendo o rosto do rapaz com uma das mãos, fazendo com que ele lhe encarasse nos olhos. Ele mirou-a e sentiu-se levemente reconfortado.

- Eu sei disso... é só que...

- Que você tem medo. Eu sei. Não se preocupe, tá? Confie em mim... - Melinda estendeu a mão para ele. Lucas esperou uns instantes, depois olhou novamente para trás. Durante alguns segundos, ficou refletindo sobre tudo aquilo. Então, esticou sua mão e tocou a mão estendida da garota, segurando-a com firmeza.

- Você tem razão. Tudo vai dar certo, não é? - Uma lágrima rolou pelo rosto da jovem, enquanto ela esboçava mais um de seus maravilhosos sorrisos. Acenando com a cabeça, ela concordou e puxou-o para um ônibus que esperava ali. Entregou as passagens ao cobrador e entraram em seguida. Sentaram-se lado-a-lado em seus respectivos assentos, ainda de mãos dadas, enquanto olhavam pela janela a cidade que deixariam para trás. Então a jovem recostou sua cabeça no ombro do garoto e murmurou:

- Você já sabe para onde vamos? - Lucas sorriu e respondeu enquanto o ônibus entrava em movimento:

- Sendo com você, qualquer lugar...