A obra-prima
Eu sei que ela existe, só não sei onde fica. Tenho procurado por todos os caminhos por onde ando, mas em vão. Às vezes o reflexo de um raio de sol me faz pensar que a encontrei, mas quando chego perto, nada. É como uma miragem no deserto. Penso que talvez esteja procurando em lugares errados. Talvez ela esteja mais perto do que penso, talvez exista até mais de uma. Aqui na minha cidade mesmo, tem uma rua ocupada por vários casarões abandonados. Penso que um deles pode ser ela. Mas perscruto inutilmente. Fico parada em frente a cada um deles esperando um sinal. Tento olhar pelas frestas, mas só enxergo a escuridão. Chego até a bater esperando que alguém me mande entrar. Mas nenhuma voz chama por mim. Eu não ouço.
Uma vez, em uma cidade praiana, onde eu costumava passar o verão, pensei tê-la encontrado. Cheguei a entrar. O ambiente era sombrio como sombrias eram as pessoas que ali estavam. Tentei me aproximar das estantes para ver o que expunham. Uma mulher de olhos malignos me interrogou com os seus olhos malignos. Sem abrir a boca, só me olhando. Mas ouvi-a me perguntando: o que você procura? Eu respondi com um fiapo de voz: nada, quero apenas olhar os livros. Se você não procura nada, aqui não tem. E o que você procura se não sabe o que é não vai achar. Volte quando souber o que procura. Um cachorro amarelo me empurrou gentilmente para fora colocando em mim seu focinho brilhante. Fui covarde, eu sei, mas saí dali apressada. Com a pressa que me permitiram minhas pernas trôpegas. Atravessei a rua e fui andar no calçadão. Andei, andei, até que minhas pernas se firmaram outra vez. Enchi-me de coragem e voltei sobre os meus passos. Queria ir lá de novo. No entanto, por mais que andasse, indo e vindo, não a encontrei. Tinha desaparecido. Foi o sol, disseram meus amigos, rindo de mim. Aqui não tem nenhuma livraria, nunca teve. Você, com essa mania de ler, fica vendo livrarias em toda parte. Vamos tomar uma cerveja que isso passa. E passou. Deixei de lado. Desisti. Mas nunca foi por completo a desistência. Todas as vezes que recomeço a escrever meu livro, recomeço a procura. E agora mais que nunca eu preciso achá-la. Quero terminar o que será minha obra prima: A trilogia, Morro Alto. Foi tão fácil escrever O Cachorro Amarelo. Foi tão fácil escrever O Clube do Cravo Vermelho. Mas agora, Os filhos de Abud, empacamento completo. Não saio do terceiro capítulo. Não há nada mais triste do que isso. E eu tenha certeza, será este o volume que fará eterna minha produção. Uma obra perfeita, sem erros. Não há preço que eu não pague para terminá-la. E imprimí-la. Em vê-la editada, com uma capa brilhante.
Como descobri sua existência? Foi por acaso, puro acaso. Um dia, freqüentando um sebo, sentei-me em volta de uma mesa redonda e pus-me a manusear os livros que ali estavam. De repente, sei bem nem por que, passei do folheamento distraído a uma leitura atenta. Estava ali a história completa, contada por um tal de Nelson Bond. Eu nunca havia lido nada dele, nunca havia sequer lido ou ouvido o seu nome. Mas a história me fascinou. Uma livraria onde estavam expostas todas as obras primas dos mais famosos e brilhantes escritores. Todos eles já mortos. Shakespeare, Milton, Jane Austen, Edgar Alan Poe, Conan Doyle. E nenhuma, nenhuma das obras era conhecida minha, conhecida de ninguém. Eram publicações inéditas. Levantei meus olhos da história que lia e eles foram se fixar em alguns volumes colocados sobre a mesa. Peguei e fui lendo: O Vice-Rei, de Machado de Assis, Ana do Brasil, de Eça de Queiróz, A Aldeia na Serra, de José de Alencar.Até que vi um grosso volume, capa dura,papel brilhante: Morro Alto de Maria Olímpia Melo. Eu estava estupefata. Nenhum desses livros tinha sido editado, eram completamente desconhecidos, mas estavam ali. O meu livro, eu nem tinha acabado de escrever.Levei as mãos em sua direção mas me detive. Voltei para terminar o conto que estava lendo, pois era um livro de contos que eu tinha nas mãos, tentando compreender alguma coisa. Foi aí que vi um homem macilento parado junto à mesa onde eu estava. Ele perguntou-me: está gostando dessa seleção de Contos Fantásticos? Sim, estou, respondi, mas como se explica estes volumes que estão aqui empilhados? Eu nunca ouvi falar destes livros, a não ser do meu, que nem terminei de escrever, nunca li sobre eles? Ele me respondeu: todo autor tem direito a sua obra maior. Estas aí são as obras primas de grandes escritores de nossa língua. Mas como nunca ouvi falar delas? E o meu livro? Ah, respondeu com um sorriso sarcástico, ninguém em sua dimensão ouviu. São obras escritas e publicadas em uma dimensão diferente da sua. Escute, eu vou lhe buscar um café e depois conversamos. E ele saiu e eu fiquei ali, lendo o tal conto até o final, querendo pegar o meu livro, mas adiando o momento com medo que ele se desfizesse no ar. Foi então que senti uma presença e levantei os olhos: um garçom jovial colocou sobre a mesa uma xícara fumegante de café e um cestinho com pães de queijo. Era muito jovem e desajeitado. Perguntei-lhe: onde está o senhor que estava aqui conversando comigo? Ele disse: não tinha ninguém conversando com a senhora, eu vim atendê-la e fui buscar seu pedido. Boquiaberta, olhei para minhas mãos: estava segurando o cardápio. Olhei para a mesa e os livros tinham desaparecido dali. Olhei para as estantes de livros e estavam repletas de garrafas e latas. Cervejas, sucos, vinhos. Mas aqui não era uma livraria? Um sebo? Que eu saiba não senhora. Sempre foi um bar. Bem, eu fiquei quieta. Não queria parecer tola. Ou doida. Mas a partir daí comecei minha busca. E assim troquei minha vida de escritora pela de andarilha. Procurando os sinais que me permitirão terminar de escrever minha obra prima.
(Texto inspirado na leitura do Conto A Livraria, de Nelson Bond, o qual li no Livro Contos Fantásticos No Labirinto de Borges, publicado pela Editora Casa da Palavra – Seleção de Braulio Tavares.)