No horror da floresta
Leonardo sentia uma pontada de inquietação enquanto ajeitava a câmera para captar a paisagem densa da floresta em Monte Branco. Ao lado dele, Manuela se encostava em um tronco, segurando a bolsa de mantimentos com uma expressão de tédio que ela nem se dava ao trabalho de esconder. Tinham deixado o carro na rodovia velha, a alguns quilômetros de distância, por medo de assaltos. Estavam ali para algo grande – ou, pelo menos, Leonardo acreditava nisso.
Ele ajustou a lente, o dedo pronto para clicar. Mas antes que pudesse captar o momento perfeito, um toque no ombro o fez perder a concentração.
– Droga, Manu! Eu finalmente tinha achado o ângulo certo – ele reclamou, com uma ponta de frustração.
Ela sorriu sem qualquer culpa, o olhar mais interessado no celular em suas mãos.
– Você que quis vir para essa trilha. Eu estava bem em casa, no meu celular, falando com o Lucas – respondeu, com um tom de provocação que Leonardo conhecia bem.
Ele suspirou, o desgosto evidente no rosto.
– Lucas, Lucas… Você não para de falar nesse cara – resmungou.
– Me deixa, tá? – retrucou ela, virando o rosto e aumentando o volume do fone.
Leonardo se voltou para a câmera. Conferiu a foto, agora borrada, sem qualquer valor. Suspirou, desapontado. Contudo, um detalhe na imagem chamou sua atenção. Algo ao fundo, entre as folhas.
Ele franziu a testa e aproximou os olhos da tela. Era… um celular? Jogado no meio da floresta, sujo, abandonado. Um iPhone, pelo que conseguiu ver.
– Espera aqui, Manu, já volto – disse, e já estava se afastando antes mesmo de ouvir a resposta dela.
Ela fingiu não escutar, aumentando o volume da música. Ele avançou pela trilha, escalando troncos e desviando de galhos até chegar a uma área onde o solo era barrento e escorregadio. O celular estava jogado entre algumas pedras, com a tela rachada, sujo de lama. Ele estendeu a mão, tomado por uma curiosidade que não conseguia explicar.
Na tela inicial, a imagem de duas meninas asiáticas sorrindo, cachecóis brancos em volta do pescoço e a Torre Eiffel ao fundo. Aquilo não fazia o menor sentido. O que um celular perdido, de alguma turista estrangeira, estava fazendo ali, na zona sul de São Paulo?
Ele chamou a irmã, que tirou um dos fones de ouvido, já intrigada com o celular na mão dele.
– Olha isso – disse ele, mostrando a tela. – Está bloqueado, mas é seu se quiser. Boa sorte pra desbloquear.
Ela sorriu, como se aquilo fosse fácil, e deslizou a tela para cima. O aparelho desbloqueou sem nenhuma senha.
– Irmãozinho, eu sei tudo sobre iPhone – disse, um pouco presunçosa.
A galeria estava cheia. Ao abrir as fotos, Manuela franziu a testa, as imagens saltando à sua vista como flashes de uma lembrança que ela não queria ter.
– Leo, olha isso.
Leonardo se aproximou e viu, nas fotos, flashes de um terror silencioso. Na tela, as meninas da foto inicial estavam em várias poses, sorrindo, explorando lugares – mas em algumas imagens, o sorriso desaparecia. Uma das últimas fotos mostrava uma delas ensanguentada, ferida, com os olhos arregalados.
Manuela virou-se para o irmão, os olhos dela agora mais escuros, quase sem brilho.
– Que porra é essa? – murmurou, sua voz uma nota de medo que eles não costumavam ver um no outro.
Foi então que ouviram um som. Um pedido de ajuda. Vinha de dentro da mata, uma voz rouca, entrecortada por pausas que pareciam ser feitas por quem não tem muito fôlego.
– Por favor… Ajudem… Por favor… – a voz ecoava.
Manuela, ansiosa, tentou ligar para a polícia, mas não havia sinal ali. Guardou o celular e começou a recolher a bolsa, preparando-se para seguir Leonardo na direção da voz.
– Vamos voltar, Leo! Depois chamamos a polícia e voltamos com ajuda – ela implorou, mas ele balançou a cabeça, teimoso.
– Se voltarmos, pode ser tarde demais. Só anda e fica atenta.
Eles começaram a avançar na direção dos gritos, a floresta fechando-se em volta deles, as árvores assumindo um aspecto ameaçador, como se houvesse olhos nos observando. Depois de um tempo, subiram um barranco enlameado, e Manuela escorregou, caindo com o rosto na lama.
– Que droga, Leo! Eu devia ter ficado em casa – bufou, limpando a lama do rosto.
Leonardo a ignorou, a atenção fixa no celular que agora mostrava uma nova notificação de bateria baixa: 3%.
Avançaram mais um pouco e, quando Manuela já não suportava mais, ouviram o som de água corrente. Ela olhou para o irmão, desconfiada, mas ele seguiu à frente, determinado.
Acharam um pequeno lago alimentado por uma cachoeira. Leonardo se aproximou da água e a encorajou:
– É água boa. A gente precisa beber, nossa água acabou.
Manuela fez uma concha com a mão e tomou um gole. Imediatamente, cuspiu.
– Tem gosto de… podre – disse ela, enojada.
Leonardo tomou um gole e sentiu um gosto amargo de algo em decomposição. Olhou para a água e viu, boiando, o crânio de um animal… ou o que ele esperava que fosse de um animal.
– A gente precisa sair daqui agora – sussurrou ele, sentindo o medo correr como gelo em suas veias.
Tentaram voltar à trilha, mas tudo ao redor parecia mais fechado, mais sombrio, como se o próprio chão se movesse. Sentiam-se perseguidos, as árvores sussurravam ao vento, e a mata parecia respirar ao seu redor, como um monstro esperando para atacá-los.
De repente, ouviram o grito mais uma vez.
– Socorro… Por favor, ajudem… – mas agora estava muito mais próximo.
– Eu não consigo mais, Leo… – disse Manuela, com lágrimas se formando em seus olhos, enquanto se deixava cair em um tronco caído.
Ali, no chão, estavam espalhados vários bonecos feitos de barro e madeira, grotescos, sem rostos, com pedaços de folhas e galhos enroscados. Ela pegou um deles, e, por um instante, teve uma visão aterrorizante de si mesma, submersa em um poço cheio de sangue.
– Temos pouco tempo antes de escurecer. Precisamos encontrar a trilha – Leonardo disse, a voz trêmula, tentando soar firme.
O céu já estava manchado de tons de laranja, como sangue misturado com cinzas, e o frio começava a cortar o ar. As lanternas piscavam, hesitantes, cada vez que as ligavam, e os celulares não tinham sinal algum.
Andaram mais um pouco até que Manuela desabou de cansaço.
– Não consigo mais… Meus tornozelos estão inchados.
Leonardo também estava exausto, mas foi então que sentiu algo no ar. Um cheiro. Parecia churrasco. Seu estômago roncou.
– Você está sentindo isso? – ele perguntou, o olhar fixo, quase hipnotizado.
– Não sinto nada – respondeu ela, com uma voz fraca.
– Espera aqui. Eu já volto – disse, se afastando rápido.
Manuela ficou ali, sozinha, tremendo, e viu a lanterna começar a falhar. No escuro, percebeu que estava sendo observada. Homens com máscaras feitas de barro e argila surgiram do mato, ao seu redor, movendo-se como sombras.
Ela gritou.
Mas Leonardo já estava longe demais para ouvir. Caminhava para o que parecia ser uma fogueira, um círculo de fogo onde homens mascarados dançavam e comiam. Um deles lhe ofereceu um pedaço de carne, quente e suculento.
Sem pensar, aceitou e devorou, mastigando cada pedaço, sentindo-se mais vivo, mais forte. Ele fechou os olhos, saboreando o gosto salgado e doce ao mesmo tempo.
Quando terminou, lembrou-se, de repente.
– Minha irmã… – disse, tentando se erguer.
Um dos homens mascarados apontou para a fogueira, onde um rosto derretido surgia entre as brasas, como uma imagem fugaz, mas que ele não podia deixar de reconhecer.
Era Manuela. Ela o olhava, mas seu olhar era de gelo, de silêncio, e, quando ele quis gritar, já não havia mais voz, nem vida.