O Chamado na Névoa
A jovem Luci ri alegre enquanto se aprofunda na mata em mais uma trilha com seus amigos.
Ela é uma trilheira aguerrida, em ótima forma e com espírito explorador que rapidamente abre dianteira e, apesar dos protestos e apelos de companheiros, se aproxima cada vez mais do destino, o ponto mais alto da trilha onde há um lindo mirante.
Entretanto uma densa neblina aos poucos vai se formando e ela, mesmo tendo um ótimo senso de navegação, se vê perdida. Ao invés de gritar por ajuda e alertar seus amigos, afinal seu orgulho aventureiro impedia isso, ela decide continuar. Infelizmente Luci se vê cada vez mais sem rumo, a neblina cobre tudo como um lenço branco sobre seus olhos, mal se vê um metro a frente.
Muito tempo se passa e ela enfim se rende e grita buscando pelo seu grupo, e nada se ouve em resposta. E tenta fazer isso várias vezes. Com uma ponta de desespero surgindo ela decide simplesmente sentar e esperar a névoa se dissipar, e nisso um estranho cansaço a domina. Acreditando estar em um local seguro ela forra o chão com uma toalha de mesa que trazia na mochila, a intenção deles era mesmo um piquenique, e usa a própria mochila como travesseiro deitando sobre a toalha. Não demora muito, adormece.
O frio a desperta, a sua volta só escuridão, já era noite? Ela olha para cima, sem estrelas, percebia-se que a neblina não havia passado.
"Droga", pensou ela.
Ela grita novamente, tentando ser ouvida por alguém. O mesmo silêncio de antes.
Onde estariam seus amigos?
"Provavelmente preocupados e putos comigo. Devem estar loucos com polícia e bombeiros atrás de mim. Que vergonha, logo eu, a trilheira mais pica e experiente da galera!" - pensou ela.
Enquanto Luci refletia sobre a ironia de sua situação, o silêncio denso ao redor começava a parecer... estranho. Não havia o som da floresta. Nada de insetos, nada do ocasional balançar de folhas. Apenas o silêncio, tão espesso quanto a neblina que a envolvia. Ela abraçou os próprios joelhos, tentando ignorar a crescente sensação de inquietação.
Ela tentou forças os olhos para penetrar na escuridão. Mas era como se houvesse uma parede opaca, apenas uma penumbra abafada.
O tempo passou de maneira estranha; era difícil dizer se minutos ou horas se arrastavam. O frio só aumentava, se infiltrando em seus ossos. Decidiu que precisava se aquecer, então se levantou e tentou caminhar, mas a neblina parecia girar e enganá-la em cada passo. A cada tentativa de avançar, sentia-se de volta ao mesmo ponto. Era como se o próprio espaço estivesse... errado.
Foi então que ouviu um sussurro.
Baixíssimo, quase imperceptível, um murmúrio distante que não parecia vir de lugar nenhum em específico. “Luci...”, era como se o som estivesse flutuando ao seu redor, impregnado de algo antigo e desconhecido. Ela congelou, tentando localizar a origem, mas ele cessou, deixando apenas a densa neblina ao seu redor e um eco em sua mente.
“O que está acontecendo aqui?”, pensou, com o coração acelerado. Envolveu os ombros com os braços e apertou, como se isso pudesse dar alguma segurança, e mais uma vez gritou, agora sem nenhum resquício de orgulho, mas com um desespero que não conseguiu conter.
“Alguém! Por favor!”
O silêncio foi a única resposta, mas agora o silêncio parecia... atento.
Parada e congelada ela deixou os ouvidos ficarem mais atentos e aguçados. Ela pode discernir então pequenos sons, um farfalhar crescente... Era o vento balançando suavemente as árvores. Aos poucos ela sentiu o toque da brisa também em sua face e seus cabelos.
“Talvez tenha sido isso que ouvi, o vento. Será que essa neblina finalmente vai embora?”
Com um pouco de esperança ela olhou pra cima e pode ver finalmente rasgos de escuridão onde estrelas agora cintilavam no céu.
“Finalmente” – falou ela pra si mesma
E então mais uma vez o sussurro:
“Luci”
Desta vez, a voz soava próxima, quase ao pé de seu ouvido. Luci virou-se bruscamente, buscando algum sinal, alguma silhueta na penumbra, mas não havia nada além da neblina que, embora ligeiramente menos densa, ainda cobria o chão e criava formas indistintas na escuridão.
Ela fechou os olhos, respirando fundo, tentando acalmar o coração que martelava no peito. “É só o cansaço, Luci,” disse a si mesma em voz alta, tentando se convencer. Mas, ao abrir os olhos novamente, viu algo que a fez congelar.
Havia uma sombra entre as árvores, mais escura que a própria escuridão ao redor. Parecia ser uma figura, imóvel, observando-a. Luci piscou, tentando clarear a visão, mas a figura ainda estava lá, inerte, como uma sombra projetada pela própria névoa.
“Luci...” — o sussurro de novo, mais claro, como um chamado. Desta vez, tinha um tom melancólico, quase suplicante. Algo na voz parecia vagamente familiar, mas ela não conseguia reconhecer.
“Quem está aí?” perguntou, forçando coragem na voz. Um calafrio percorreu sua espinha, e ela deu um passo para trás, mas seus pés pareciam afundar no chão macio da floresta, como se fossem puxados para baixo.
A figura, imóvel, parecia ganhar contornos mais definidos. Parecia alguém... conhecido. Luci sentiu uma onda de lembranças se embaralharem em sua mente, mas a sensação de perigo a manteve alerta. Era uma figura alta e esguia, envolta em sombras, com olhos que brilhavam em um tom pálido.
Sem entender o que a movia, ela deu um passo à frente, hipnotizada. E, enchendo-se de coragem, disse:
“Eu vejo você...”
Ela se aproximou. Apesar de naturalmente assustada Luci era dessas pessoas que nunca se deixaram dominar pelo medo.
A cada passo uma mudança começava a dominar o ambiente, uma luz indistinta tomava conta de tudo. A mata aos poucos ia se tornando mais verde e mais colorida.
A figura se iluminou. E não era assustadora, não era algo vindo de um pesadelo, antes era algo vindo de um sonho.
E talvez daí a lembrança, daí parecer alguém, ou algo conhecido, porque talvez fosse algo vindo de algum sonho de criança.
“Venha Luci”
“Mas devo ir, agora?”
“Sim, já ficou tempo demais.”
Luci se aproximou. A figura estendeu sua mão, ou algo parecido, e Luci a segurou. Imediatamente foi envolta em grande paz.
E então, partiram.
No hospital, a mãe de Luci segurava a mão da filha com carinho e esperança misturada com tristeza. Ela observou o desenho ao lado da cama, aquele que Luci, ainda pequena, fez com tanta dedicação e vivacidade. Era a representação de um bosque onde Luci havia se desenhado de mãos dadas a uma figura alta e serena, com olhos gentis, que ela descrevia como um de seus amigos imaginários. Na época, a mãe apenas sorria, achando graça da filha, sem imaginar que esse amigo imaginário voltaria em um momento tão delicado.
A mãe acariciou os cabelos da filha e beijou sua testa como sempre fazia todos os dias quando vinha ao hospital desde que ela fora encontrada depois do acidente na trilha meses atrás. Talvez hoje fosse a última vez, os médicos disseram.
Por isso dessa vez o beijo foi mais demorado e acompanhado de lágrimas. Era uma despedida. Ela afagava o rosto pálido de Luci, sussurrando baixinho, como se ela pudesse ouvir.
“Se você precisa ir, querida, vá em paz. Vou estar aqui sempre, te amando.”
Na quietude do quarto, Luci ainda respirava, mas sua mente parecia já ter partido para além. No silêncio, enquanto a mãe segurava a mão dela, uma expressão tranquila e quase sorridente se formou em seu rosto, como se estivesse em um lugar seguro e acolhedor, distante daquela cama fria. A mãe percebeu, com um aperto no coração, que Luci estava em paz, e talvez finalmente a despedida fosse menos dura.
Horas depois, os monitores silenciaram, e Luci partiu serenamente, como alguém que encontrou um caminho para o qual sempre esteve destinada. Naquele momento, a mãe percebeu que, mesmo sem entender completamente, sua filha estava seguindo em frente, guiada por algo maior, e, no fundo, já não estava sozinha.