O Julgamento

Eu estava lá, flutuando entre o etéreo e o real, observando meu corpo sem vida. Podia vê-lo perfeitamente, deitado sobre a fria cama de hospital. Os médicos e enfermeiros se afastavam lentamente, seus rostos pesados de frustração e cansaço. Todo o esforço, toda a luta para manter aquele corpo vivo, e ali estava ele: um invólucro vazio. Inerte. A vida se resumia a isso? A um término tão abrupto, indiferente, sem glória? A minha vida, toda ela, chegava ao fim ali, num estéril quarto de hospital.

Permaneci imóvel, ou ao menos senti que assim estava. O que seria de mim agora? Ou melhor, o que seria de minha alma, esse fragmento de mim que flutuava, consciente de sua própria desmaterialização? Em vida, nunca me preocupei com a morte. Afinal, para que pensar nela enquanto a vitalidade ainda flui? Sempre acreditei que a eternidade seria o momento ideal para refletir sobre a morte... e agora, ao que parecia, esse momento havia finalmente chegado.

Senti uma vaga ansiedade, uma necessidade de resposta. Para onde deveria ir? Haveria uma jornada, um caminho pré-traçado, ou me caberia esperar, à deriva? Esperei. Olhei para cima – ou algo assim – pois não sabia ao certo se ainda possuía olhos ou algo equivalente a isso. Mesmo assim, fixei minha atenção para cima, esperando o teto se abrir, uma luz celestial brilhar ou, quem sabe, um anjo surgir em meio ao firmamento. Mas o teto, aquele insosso teto hospitalar, continuava lá, inalterado, implacável em sua trivialidade.

De repente, algo abaixo de mim começou a mudar. O quarto de pronto-socorro, com seus equipamentos e monitores, desvanecia. O que surgia em seu lugar era uma vastidão negra, um vazio profundo, como se o chão se abrisse para revelar um abismo primordial. E daquele abismo, surgiu uma criatura que me tirou o fôlego – se eu ainda o tivesse. Majestosa e grotesca ao mesmo tempo, algo entre o humano e o bestial.

"Então é isso", falei para mim mesmo, a voz reverberando no vazio. "Nada de Paraíso, nada de campos celestiais. Fui condenado. O Diabo veio me buscar."

A criatura, que eu julgava ser o Diabo em pessoa, abriu sua boca. Uma boca canina, cheia de presas pontiagudas e dentes ameaçadores, e para minha surpresa, ela falou:

"Aquiete-se. Ainda não foi julgado. Serás agora conduzido ao Salão dos Mortos, onde tua alma será pesada e julgada. Pois teu coração será comparado à Pena da Verdade."

A voz era profunda, ressoando com uma autoridade além da compreensão humana. Cada palavra fazia meu ser estremecer, como se meu próprio estado incorpóreo fosse moldado por aquela sentença.

"Mas quem... ou o que... é você?" perguntei, hesitante.

"Tenho muitos nomes", respondeu a criatura, com uma calma imponente. "Mas em tua época, sou lembrado como Anúbis. Agora, me acompanhe."

Anúbis. O nome ressoou em algum recanto obscuro da minha memória. Onde eu já ouvira aquele nome? Seria possível? Onde estavam os anjos que tanto me prometeram? Onde estavam os santos, os mártires, ou até mesmo o próprio Diabo que eu tanto temera? Em vez disso, estava diante de Anúbis, o deus egípcio da morte, com sua pele escura e corpo imponente, metade homem, metade chacal.

Ele começou a caminhar, e eu, ou melhor, minha essência, o segui. A cada passo, a realidade ao nosso redor se transformava. A transição era surreal, quase líquida, como se a própria matéria se moldasse ao redor de nossa presença. De repente, estávamos em um espaço vasto, sem paredes, com um horizonte que se estendia para o infinito. Um vento brando soprava, carregando um perfume antigo, de areia e histórias esquecidas.

No centro desse vasto nada, vi uma pequena balança, e ao lado dela, uma figura feminina. Era, sem dúvida, a mulher mais bela que meus olhos já haviam contemplado. Uma aura divina irradiava dela, uma presença que transcendia o mero conceito de beleza humana. Era uma deusa. Não havia outra explicação.

"Maat", disse Anúbis, reverenciando-a. "Trago-lhe um homem."

Ela olhou para mim, e seu olhar parecia perfurar minha alma. "Diga teu nome", ela ordenou.

Eu hesitei por um segundo, sentindo o peso daquele instante. "Meu nome é...", e o resto de minha vida pareceu ecoar naquele simples ato de nomeação.

"Agora é a hora", disse Anúbis, sua voz preenchida com uma solenidade impenetrável.

De repente, uma dor lancinante atravessou meu ser. Era como se algo estivesse sendo arrancado de mim com brutalidade. Olhei para baixo – ou o que eu achava ser 'abaixo' – e vi o que Anúbis segurava em suas mãos: meu coração. Vermelho, pulsante, como um eco distante da carne que eu havia deixado para trás. A última parte de minha existência mortal.

Ele colocou o coração sobre um dos pratos da balança. Maat, com movimentos graciosos, retirou uma pena de sua coroa. A Pena da Verdade. Ela colocou a pena sobre o outro prato. O julgamento havia começado. O silêncio era esmagador. A balança pendeu. Para o lado do coração.

Eu sabia o que aquilo significava. Mesmo sem entender completamente o que tinha sido pesado em mim, sabia que meu destino estava selado.

"Não verás o barco de Rá", disseram Anúbis e Maat em uníssono. Suas vozes soaram como um veredicto eterno, ressoando pelo vazio.

Deuses, Céu, Inferno, tudo o que a humanidade havia criado como explicações para o além... nada disso importava mais. Não havia um Deus único, mas muitos deuses. E o julgamento era real, implacável.

Ouvi um som áspero. Um ronco baixo e bestial. Um arrastar de garras. E então o vi, emergindo da escuridão: Ammit. A criatura era uma fusão grotesca de leão, crocodilo e hipopótamo, um símbolo de destruição e julgamento final.

Antes que eu pudesse implorar, ou dizer qualquer palavra, senti seus dentes se cravarem em minha essência. Minha alma foi despedaçada. Tudo o que fui deixou de existir. Sobraram apenas a dor e o lamento, essas sim eternas, destinadas a me acompanhar por toda a eternidade.

Nos últimos lampejos de minha consciência, vi Anúbis trazer outras almas para o julgamento. Eu não seria o último.

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 21/10/2024
Reeditado em 21/10/2024
Código do texto: T8178888
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