Mistério do cotonete maldito (miniconto da ‘Es’-Crypta)

Entrou, olhou ao redor no interior do cômodo... e nada parecia fora do lugar.

Não precisava acender a vela no castiçal suspenso da pilastra, pois alguma luz do sol entrava pela minúscula janela daquele santuário onde o famoso padre estava sepultado com os restos mortais devidamente acomodados num belo ataúde sobre uma superfície de granito. Em todo o Continente europeu corria a fama de que o corpo do falecido não se deteriorava, jamais entrando em decomposição.

O recinto era sagrado.

Somente ele próprio, que era um humilde funcionário, entrava ali durante os dias úteis, com seu arsenal de chaves distribuídas em molhos gigantescos pendurados em sua cintura. E isso era uma tarefa a ser feita rigorosamente ao menos uma vez por semana, sendo uma vistoria necessária para prevenir qualquer sinal de violação por conta de alguns objetos valiosos acomodados ao redor do ocupante ilustre. E a regra cerimonial proibia que qualquer objeto eletrônico fosse manuseado, razão pela qual jamais ele entrava com o aparelho celular. E até mesmo evitava ligar a sua pequena lanterna de bolso.

Já se virava em direção à porta gradeada por onde havia acabado de entrar, que também era a única maneira de sair do recinto, quando, porém, seu olhar treinado para enxergar na penumbra percebeu um minúsculo detalhe no chão. Aquilo mereceu atenção, pois era tudo muito bem varrido durante a faxina mensal e ele mesmo cobrava rigor da pessoa incumbida da faxina e por isso perceberia se tivesse ficado até mesmo um alfinete no chão.

Agachou-se e tomou um susto. Não era um alfinete, mas desenhou-se perante seus olhos algo igualmente curioso. Estendeu a mão e recolheu entre os dedos um... COTONETE...!

Desta vez teve que ligar a pequenina lanterna de bolso, acendendo-a apressadamente e direcionando o foco para o minúsculo objeto. Ficou ainda mais pasmo, pois o cotonete estava com um resíduo que nitidamente lembrava cera de ouvido ainda fresca.

Arrepios à flor da pele, passou a se perguntar se aquilo poderia representar algum sinal direcionado para ele por causa de suas declarações de ceticismo irredutível diante de coisas tidas como sobrenaturais que poderiam ter explicações ainda não dadas pela Ciência, pois esperava que esclarecimentos simples logo viriam com o passar do tempo.

Decidiu desafiar a tentação de cair na credulidade ingênua e, como não havia ainda como explicar aquele fato estranho, resolveu levantar a “tampa” do ataúde onde repousava o morador ilustre que tinha fama de milagroso. E, ao fazer isso, notou que o braço direito do mesmo estava arqueado em direção a cabeça e os dedos das mãos estavam posicionados em direção a uma das orelhas.

“Isso não pode estar acontecendo...! ” — pensou ele.

Depois de alguns minutos de perplexidade, com o coração descompassado, resolveu não levar aquilo a sério num grau que abalasse seu ceticismo. Acomodou o cotonete em um dos bolsos e decidiu que o melhor era se retirar e retornar no dia seguinte, apostando que assim teria tempo para encontrar uma explicação racional vinda das leis naturais. E também teria tempo para investigar a possibilidade de estar sendo vítima de um truque de alguém do mundo dos vivos que talvez estivesse querendo lhe provocar uma mudança de paradigma.

Passou pela mesma porta por onde havia entrado (pois não havia outra passagem), ruminando em seu pensamento que somente uma força maior do que sua vontade poderia levá-lo a considerar plausível essa coisa chamada “ o sobrenatural”. Sentiu vontade de fumar, mas já vinha tentando deixar esse vício e por isso não tinha comprado cigarros naquele dia. E vinha sendo algo muito difícil o esforço de parar com o tabagismo, parecendo que suas tentativas quase nada podiam contra o vício.

E, nem bem havia acabado de trancar a grade que fazia a função de porta, com a imagem de um cigarro bem forte lhe incomodando na lembrança, notou quando algo fininho esvoaçou por entre as barras de ferro.

“Mas... será outro cotonete? ” – perguntou-se, sobressaltado.

Quase não se segurou sobre os pés, perante aquilo que acabava de cair no chão ao seu lado. Era um CIGARRO aceso...!

Aquilo, sim, era um sinal dos Céus. O impulso de fumar naquele momento era uma força maior do que sua vontade de largar o vício, sendo exatamente algo assim que lhe poderia levar ao ponto até mesmo de que ele considerasse plausível essa coisa chamada “ o sobrenatural”.

Colocou o cigarro entre os lábios, deu um gostoso trago de aprovação... e prosseguiu para outras atividades externas, pensando em voltar no dia seguinte para visitar o local e dessa vez já chegaria trazendo um maço de cigarros, quando então iria fazer sua primeira prece ao santo padre (o morto) que acabava de ganhar um adepto da crença no “sobrenatural”.

E, a partir daquele momento, quando as pessoas notavam que ele havia mudado de cético para fervoroso católico, sempre aparecia quem perguntasse qual a razão de ele não abandonar “o maldito vício do cigarro”.

Então, ele respondia sem hesitar:

— “Mas eu ia mesmo abandonar o vício de fumar, quando fui impedido por um maldito cotonete”.

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Da coleção zezediozoniana: “Minicontos da ‘Es’Crypta”