Cidade Pequena
Ouçam meus filhos,
A instrução de um pai;
Estejam atentos e obterão discernimento.
Provérbios 4:1
O barulho pareceu um trovão ou ao menos foi tudo que Caio conseguiu assimilar antes de levantar as pressas da cama.
Pela janela seu pai empunhava um revólver 357 Magnum, não que ele entendesse de armas, mas lembrava daquela de algum jogo de terror que não lembrava o nome no momento.
-Desce aqui rápido. Gritou Antônio enquanto conferia o toco de árvore atingido.
Jornalista local na pequena Água Doce, ele vinha de uma família tradicional e religiosa na cidade, seu pai fundou a rádio Nossa Estação nos anos sessenta o que pode assegurar certa notoriedade, trazendo a rotina da cidade e informando sobre os mais diversos assuntos, sua mãe sempre firme exigia que estudasse a religião tão fortemente que o garoto mal tinha tempo para brincar.
-Segura o revólver filho. Falou rispidamente enquanto esticava a arma para o garoto que ficou pálido como se fosse pego roubando doces do mercado. "Arma é o que diferencia quem fica ou quem vai" repetia toda vez que era questionado por qualquer um que fizesse a maldita pergunta do por que guardava aquilo.
-Presta atenção Caio. A voz ficou firme, sem a doçura habitual, o menino parecia sequer respirar a cada palavra que o pai dizia.
-Você só precisa manter os braços firmes e puxar este gatilho entendeu?
Quando o disparo ocorreu Antônio só olhava para a madeira que soltava fumaça do furo enorme causado, quando ouviu baixinho pode escutar o choro quase reprimido do filho.
-Caio eu só quero que saiba se proteger, sei que não entende, mas na hora certa você estará sozinho. A voz falhava, mesmo que não dissesse o medo aflorava rapidamente trazendo algo que os olhos não sabiam dizer, abraçou e chorou, talvez não acreditasse também no que estava fazendo.
Antônio sempre foi um homem pacífico, mesmo que estivesse quase sempre trabalhando, a rádio era sua vida e de modo alegre sempre noticiava as matérias de forma leve e brincalhona, ele conseguia passar sempre uma serenidade nas suas palavras mesmo que fosse o mais asqueroso tema.
Quando de modo frequente começou a sair na madrugada Caio notou o semblante cada vez mais cansado do pai, sua mãe que parecia entendê-lo agia sempre com muito vigor, mas ele dificilmente ouvia a voz pai naquelas madrugadas, a mulher aguardava acordada até ele chegar, sempre calado e com os olhos marejados olhava como se nada pudesse ser dito, mesmo respondendo aos berros da mulher, ele parecia sempre distante ou num mundo onde ninguémo conhecia.
O rádio noticiava o desaparecimento de uma menina de 13 anos, pouco mais velha que Caio, a garota era a quarta desaparecida sem respostas das autoridades, já se tornará quase habitual o desaparecimento anual na cidade o que não mudava o fato do ocorrido,mesmo com a repercussão nada parecia se alterar,a polícia colava cartazes, visitava as famílias que de modo calmo aceitavam a perca com certa facilidade e mesmo com as buscas e as vezes com pistas que se mostravam falsas, ninguém nunca mais via qualquer uma daquelas crianças. As vezes outros jornais iam até a cidade para saber do caso,ainda que os desaparecimentos fossem espaçados não era raro ver os pais dos desaparecidos subirem ao altar nos domingos e agradecer pela misericórdia ao dar graças pelo que ainda tinham.
Quando a quinta criança desapareceu no ultimo ano, sua mãe saiu na rua gritando desesperadamente " Ele está vendo, vocês sabem!" Enquanto a polícia tentava acalmar a todos que já aglomeravam a rua vendo aquela bagunça, tudo parecia pela primeira vez sair do controle, ao ser abraçada pelo comandante local a senhora pareceu dormir levemente o que acalmou o susto geral que se formou ao redor. Era a primeira vez que uma acusação tão direta era presenciada mesmo que num momento de dor, mas no domingo a mesma mãe agradecia após o culto a bondade do Senhor sem jamais tocar no assunto. Tudo parecia normal para quem nasceu naquela cidade. O que Caio sempre entendeu dos desaparecimentos era como se mais uma criança desse a sorte conquistando a liberdade daquele pacato lugar que pouco parecia sair so cenário de um filme antigo.
Água Doce sempre foi conhecida como uma cidade próspera, rodeada por uma vasta vegetação e por longas plantações de rosas,a cidade era bem visitada em temporadas de festas o que dava um ar importante aquele pequeno pedaço de mundo, não era reformada a anos o que não tirava seu ar de local histórico e preservado.
Quando a porta é violentamente aberta com um empurrão causando um forte estrondo no parede,Caio desperta assustado da cama, na entrada do quarto diversas pessoas usando máscaras brancas e sem qualquer expressão além de rosas vermelhas nas regiões dos olhos. Cantando algo que se parecia com um som ritmado de tambores, a música era de algum idioma estranho e de certa forma primitivo. Cada pessoa ali parecia bloqueada de ultrapassar aquela porta, o som ensurdecedor invadia todo o quarto e nãohaviaqualquer explicação do que estava acontecendo.
O coração acelera, a boca seca e os pelos arrepiados travam junto daquele cântico, não existe uma reação lógica do que fazer e mesmo se tivesse será que o corpo responderia ao medo.
Quando em frente a porta um homem usando calça jeans rasgada, peitoral nu e com máscara de porco, só é possível ouvir sua respiração profubda e ofegante, o ar parecia deixá-lo maior e o tremor do corpo o aproximava cada vez mais para dentro.
O silêncio repentino parece cortar a carne, como um gelo escorrendo pelas costas ele se retrai, a urina quente o tenta trazer de volta inconscientemente e acumula na cama a quantidade suficiente para quebrar seu estado, mal pode controlar seus espasmos que de tão aleatórios parece não ter controle do próprio corpo, quando a imagem grotesca e sem camisa grita cortando o ar e tornando um segu do no infinito, o mundo parece andar em câmera lenta e num silêncio devastador.
O animal corre até a cama quebrando não só a barreira invisível que o segurava, como toda esperança que poderia em algum lugar ainda existir imaculada na fé unicamente.
Como numa luta perdida Caio se fecha, mas não importa, cada pancada que sente é como se garras cortassem sua pele, grunindo e respirando rapidamente ele sente o bafo quente e podre enquanto apenas tenta manter os olhos fechados, o mundo parece girar quando o chão beija sua testa, a dor quase apaga seus sentidos, desnorteado e sem reagir tenta somente se desgarrar mesmo sem acreditar que faria qualquer diferença naquele momento.
Quando é puxado pela perna, segura com todas suas forças na cama, sem entender e mesmo se pudesse, o revólver está ali, debaixo da cama como se prepado para aquele momento, estica a mão, mas cada vez mais longe ele se estica sabendo que sua unica chance esta a centímetros, o grito entalado é refletido no barulho cortante que parece engolir toda música, o silêncio parece tão alto que ninguémse atreve a fazer o menor ruído vendo aquela cena inesperada.
Entre a respiração ofegante e passos lentos, cada um ia retirando suas máscaras, o comandante da polícia, seu vizinho e até o prefeito chegavam cada vez mais perto daqueles dois corpos ali estáticos,sentindo naquele aflorar uma paz interior, quando um abraço forte tenta acalmá-lo de vez.
-Calma filho já passou,calma. Fala baixinho sua mãe enquanto passa a mão entre seus cabelos e beija sua testa, ao lado a máscarano chão junta de todas as outras.
Uma oração leve conduzida pelo pastor é seguida pelos demais com uma voz aveludada cheia de ternura fala a todos com firmeza.
-Eis que o filho derrubou o pai assim como o escolhido tombou um gigante, hoje devemos comemorar pois nesta casa está o nosso rei. A histeria e o frenesi se expressão nas palmas e ocultam o sono cansadode quem ainda nem percebeu tudo que lhe cerca.
Fim parte 1