HOMEM SEM LASTRO

 

Gabriel era uma ostra, mas, ao invés de polpa translúcida ou pérola preciosa, tinha apenas um enorme oco sem eco. Não tinha emoções, a frieza nua e crua, era o que o identificava. Tampouco.o ventre cálido, que o colocou no mundo, sentia como que não o tivesse parido e sim, o despejado no mundo, nem poderia considerar ter lhe dado uma vida. Tinha a certeza infeliz, de ter despejado no mundo, o refugo dos pecados, que por ventura, tenha cometido na vida.

 

Gabriel não era gente, talvez um homem sem lastro, sem planos e, se alguma coisa teve sentido em seu passado...se tornou realmente passado...e foi especialmente esquecido.

 

Descrever um ar frio sem sombra, é muito difícil. Traduzir as palavras desconexas e sem fundamento, que eram alardeadas, por sua boca, seria impossível para uma pessoa normal, com um mínimo de consciência. Os seus atos tinham consequências, o que pouco importava para ele. Os seus dias seguiam nascendo e acontecendo, simplesmente porque isso é da Natureza. 

 

Gabriel abria os olhos, trabalhava home office para a sua própria empresa, era arquiteto, focado em pontes e estruturas metálicas, materiais frios como ele. Linhas e retas, pois curvas ou devios, não tinham sentido em sua rotina. Poderia ser considerado um bom profissional, desde que o imperativo projeto, não fosse 'palpitado' pelos clientes. O que lhe impedia de obter mais clientes, jogo de cintura, senso comum, não comungavam com seu imperativo pensamento retilíneo. 

 

O conto, se presta à palmatória das consequências. Toda ação gera uma reação, é um princípio básico...e, elas chegam. Gabriel percebeu isso na carne dolorosamente. Digo 'percebeu" pois 'sentir' é um verbo, que não veste Gabriel.

 

Foram tantas atitudes grosseiras, uso de algumas carnes vivas deslumbrados, qualquer outro mortal para Gabriel, era um mero serviçal. Ficava visível o asco que sentiam perto dele. O arquiteto competente que era, fazia que ele obtivesse sucesso, mas, precisava sempre mudar a equipe, pois as pessoas só permaneciam perto dele, até o final da primeira obra, era tóxico manter-se próximo ao conhecê-lo.

 

Acredito que a Lei do Retorno é justa e, até mesmo rápida...o tempo de 'ladeira abaixo'  de Gabriel enfim chegara. Logo na primeira semana de Janeiro, a ponte retrátil que projetou e, assinou parte das compras dos materiais, desabou matando seis pessoas, foi processado e teve que pagar, uma indenização vultuosa, que quase o levou à falência. Perto do Museu da cidade, outra obra foi embargada por defeito nos encaixes, que por acaso foram comprados por ele, mas, alguns foram desviados, por um operário safado, que substituiu por peças inferiores...resultado...mais multas e a suspensão do seu registro profissional. A vida foi indo de derrocada em derrocada, mas, seu semblante frio nada demonstrava. As dívidas se acumulando, começou vendendo alguns eletrônicos de casa e, também da empresa. Só que não mudava o padrão de vida, bons restaurantes, teatro, clubes seletos, mulheres caras.

 

Abril já se anunciava e, no retorno pra casa,  depois de ter saído para jantar, não acha o seu carro, ele havia sido rebocado. Passou vergonha, com a mulher que havia alugado, ela cumpriu sua função e, como souvenir, sorrateiramente levou, o seu relógio Rolex de ouro.

 

Gabriel não esboçava emoções, nem mesmo diante do espelho. Dormia profundamente, mesmo assombrado por demônios vermelhos, que gargalhavam em seus pesadelos. A rotina foi sendo adaptada, frequentando lanchonetes, usando as 'margaridas' das esquinas, bebida barata, até nada mais ter para vender, entrando no mundo sombrio das drogas, à princípio um baseado, depois o pó dos infernos...o crack foi o seu fim de linha. Sujo e prostituído, vivendo nas ruas, surrado às vezes, andando à esmo, a memória se apagando e, em seus delírios, montava pontes de arames e barbantes, fios e estopas, que encontrava pelos caminhos. Feneceu aéreo, sem lastro, nada o prendia. Talvez nem tenha percebido o apagão do fim. 

 

 

 

Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 14/09/2022
Código do texto: T7605879
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