A coruja
Sargento Perdigão, era, sem sombra de dúvidas, o sargento mais querido do 39° batalhão de infantaria motorizada, todos o adoravam, bem, quase todos, eu era a exceção que confirmava a regra...
Paraquedista, guerreiro de selva, sargento formado na Aman... é, o cara era de se admirar... Carioca da gema como ele mesmo gostava de dizer, era descolado e brincalhão. Isso, contudo, não me dizia nada, eu o detestava. Lembro que em certa ocasião, durante uma passagem de serviço, por conta de uma desavença da qual eu nem me lembro mais, eu engatilhei o meu fuzil e o apontei para o Perdigão, foi assim que o ódio mútuo começou entre mim e ele. Eu, a bem da verdade, não tinha a intenção de disparar contra ele, apenas queria ver o medo em seus olhos. Tal atrevimento me rendeu um mês de cadeia comendo comida cuspida pelos 'peixes' do sargento e o título de soldado mais alterado do batalhão. Perdigão, prometeu e jurou transformar meu ano de serviço obrigatório no exército em um inferno.
Eu, soldado Marinho até então, passei a ser chamado de monstro Marinho, alcunha criada pelo sargento Perdigão. De quebra eu o chamava de sargento perdidão.
E era nos acampamentos no mato, longe do quartel, que ele colocava em prática a sua promessa de transformar minha vida num inferno. Me lembro que certa vez ele nos fez ficar em pé em um pantano, com água e lama até o peito, segurando nossas armas acima de nossas cabeças. E o sargento Perdigão fazia questão de dizer que eu era o culpado por aquela situação, podia sentir o ódio dos soldados crescendo contra mim e, o meu ódio crescia em relação ao Perdigão.
Em um acampamento de tiro, ele me disse aos ouvidos enquanto passava instruções: 'uma bala, soldado, tem um motivo e um destino, desde o dia em que você apontou seu fuzil para mim você nomeou e deu motivo e destino a um projétil , e não há nada que você possa fazer para mudar isso'. Depois me fez ficar meia hora correndo com o canhão 57 nós ombros, quando disparei não cheguei nem perto do alvo, meu corpo tremia todo de tanto esforço que fizera correndo com aquela 'bazuca' nas costas.
O 39° Bimtz ficava espremido entre dois outros quartéis: o batalhão de infantaria brindada e o grupo de artilharia antiaérea. Existindo ainda, para alem da artilharia, um batalhão desativado, batalhão este que era guardado pelo 39°.
Lugar sinistro e de ma fama. Havia ali uns velhos galpões altos cobertos de telhas de zinco e paredes descascadas com seus tijolos de barro a mostra, mais a frente e a esquerda um cemitério de caminhões e viaturas que não serviam mais. As árvores, tanto do lado interno quando as do outro lado do muro que cercava o local eram 'peladas' não tinham copa apenas troncos e galhos secos, não obstante o fato do solo ser úmido e cheio de arbustos e capim. A noite, a luz da lua, a sombra daquelas árvores, projetadas nas paredes dos velhos galpões, lembravam gigantes enfurecidos e raivosos.
Não bastasse o cenário assustador do local, contava-se ali todo tipo de histórias, histórias estás que teriam acontecido no local. Estórias e histórias. Entre as histórias reais uma muito famosa era a do menino que foi morto por um soldado ao tentar recuperar um papagaio de papel. Correndo atrás do papagaio que vinha 'mandado' o garoto pulou o muro do batalhão, foi abordado por um soldado que o deitou no chão e colocou o cano do fuzil em suas costas, em algum momento da ação (que já era absurda) o fuzil disparou... Imprudência? Imperícia ? Maldade? Não sei dizer. O fato é que o menino morreu ali mesmo e o soldado foi julgado por um tribunal militar, teve como punição nunca poder deixar o quartel, seria para sempre um soldado. Se saísse do exército seria julgado e condenado por tribunal civil. Quando entrei para o exército ele estava lá, devia ter uns trinta anos, era o soldado que não tinha o respeito de ninguém, nem dos novatos (conscritos como eles chamam) que nem são soldados ainda.
Uma outra história famosa do lugar (não se sabe se real ou inventada), dizia que aquele local, muito antigamente, antes mesmo de haver construções ali, era usado por bruxas e bruxos para rituais satânicos e de iniciação das bruxas e bruxos novatos. E foi esse o local que o sargento Perdigão escolheu para por em prática uma de suas criações mais adorada pelos soldados: um concurso de gargalhada de bruxa. Com certeza inspirado na história dos encontros noturnos das bruxas e bruxos naquele local . O concurso era mensal, ganhava quem desse a gargalhada de bruxa mais medonha e assustadora. Ele, Perdigão, o criador, nunca ganhou o concurso, sua risada de bruxa só não era pior do que a minha.
Escusado dizer que essa era a guarda mais temida pelos soldados, ninguém queria tirar serviço ali, ficando assim a guarda quase que exclusiva para os 'peixes negativos', soldados que davam alteração. O oposto da guarda do SoPS - não sei se disse mas era assim que se chamava a guarda- era o plantão a Cia. guarda mamãozinho onde o soldado podia dormir a noite toda. Então quando um soldado estava escalado para a guarda do SoPS e não queria ou tinha condições de encarar a guarda, trocava, mediante pagamento, com o soldado que estava de plantão a Cia. eu mesmo fiz muito essa troca para conseguir dinheiro para cigarros e vinho.
Nem sempre essa troca era possível então tínhamos na guarda do SoPS, um soldado que nunca antes tinha estado lá, nem mesmo para conhecer o local. Esse foi o caso do soldado Celoide. Burguesinho das Perdizes (bairro de classe média de São Paulo) foi parar no SoPS. Já chegou assustado, e é claro que os outros soldados aproveitamos para assusta-lo mais ainda contando todas as histórias assustadoras do local, de manhã até a noite.
O serviço era feito em duplas e claro que ninguém queria fazer dupla com o soldado Celoide, acabou sobrando para mim .
O serviço a noite correspondia a duas horas de guarda e quatro dormindo, depois mais duas horas de guarda. Celoide e eu pegamos o primeiro horário. Tudo tranquilo, fazia frio mas não muito a ponto de ser insuportável. Eu fumava meu cigarrinho e de vez e quando dava um gole no meu cantil que estava cheio de vinho barato. Notei que Celoide encarava as sombras das árvores nas paredes dos galpões, de certo pensando nas histórias que ouvira durante todo o dia.
Mais ou menos meia hora depois de iniciarmos nosso turno, uma coruja meio cinza meio preta , mais feia que o normal para uma coruja, veio pousar em um galho de uma das sinistras arvores, bem em frente a nós. Parecia nós observar. Vez e quando soltava um hu, hu, huuu, huuuu, huhu. Celoide não tirava os olhos dela. 'irritante', disse, não sei se para mim ou para si próprio ou para o pássaro.
Num salto, Celoide levantou-se do banco e engatinhando seu fuzil o apontou para a coruja.
_Vou matar essa filha da puta!
_Se você disparar , vai tocar o zaralho... Vai disparar o alarme nós três quartéis... Pedra! Da uma pedrada nela. Sugeri.
Celoide seguiu meu conselho e começou a atirar pedras na coruja que levantava vôo para escapar das pedras e voltava para o mesmo lugar. Celoide cansou e voltou para o seu lugar.
_Huuuu, hu, huuuu, hu!
_filha da puta debochada, disse sentando-se outra vez no banco.
A primeira hora passou, era preciso fazer a ronda. Perguntei para Celoide se ele iria fazer a ronda nesse turno ou no próximo. Não me respondeu, deduzi que ele ficaria com o próximo turno, fui fazer a ronda deixando Celoide ali dialogando com a coruja .
Segui pelas alamedas dos galpões, o vento frio que corria entre um galpão e outro machucava meu rosto, contornei desci pelo cemitério dos caminhões, único lugar que realmente me assustava a noite naquela guarda maldita, os barulhos que vinha das viaturas e caminhões velhos eram muito sinistros... provavelmente era só o vento e os ratos que faziam aqueles sons , mas muitos soldados já relataram que ouviram conversas vindas de dentro do cemitério de caminhões. Quando estava quase fazendo o contorno pelo cemitério, meus ouvidos e alma foram invadidos por um som terrível:
_Ahhhh hahaaaaahaaaah!
Meu coração disparou, os pelos do meu corpo se arrepiaram, meu sangue gelou, era a gargalhada de bruxa mais assustadora que eu já ouvira, minha primeira reação foi correr para longe dali, contudo fiz meia volta e retornei para o corpo da guarda de fuzil cruzado no peito. Ao chegar, vi Celoide em posição de tiro, tremia tanto que dava para ouvir as placas de seu fuzil chacoalhar.
_que foi, perguntei.
A bruxa, respondeu me indicando com a cabeça.
Olhei na direção indicada por ele e pela mirada que fazia com o fuzil.
_ta maluco? É o sargento rondante, abaixa esse fuzil!
Segui os procedimentos:
_identifique-se!
_sargento Perdigão !
_avance a senha?
_alto mar! Respondeu o sargento.
_navio 7,
_trinta e cinco!
_aproxime-se, sargento Perdidao!
O sargento se aproximou com os olhos fitos em Celoide que ainda mantinha seu fuzil pronto para disparar.
_vai atirar em mim monstro? Disse o sargento, abaixa esse fuzil, emendou batendo com a mão no cano fuzil de Celoide, verme! Esqueceu o procedimento?
Celoide baixou o fuzil, estava trêmulo e branco. O sargento fez suas anotações e depois de um instante perguntou?
_o que eu quero realmente saber, é quem de vocês, monstros, soltou essa gargalhada maravilhosa de bruxa. Você, monstro Marinho, eu sei que não foi conheço sua gargalhada de bruxa é tão ruim quanto a minha. Agora você me surpreendeu soldado, essa sua gargalhada ganharia fácil o nosso concurso. Porque nunca participou?
_nao fui eu , respondeu Celoide trêmulo.
_quem foi então? Indagou Perdigão descrente.
_Foi a bruxa, respondeu Celoide olhando em volta como se procurasse algo ou alguém.
Perdigão deu uma gargalhada olhou para nós, balançou a cabeça negativamente.
_voce está no caminho certo seu verme, para se tornar negativo, logo estará igual a esse monstro ai, disse me olhando, logo sua guarda vai se só essa. É bom ir se acostumando a sua nova casa, concluiu e seguiu na sua ronda em direção ao cemitério de caminhões.
Sentamos no banco da guarda, eu olhava para Celoide que não dizia nada nem me olhava. Percebi que meu coração ainda estava disparado, olhei para a árvore a coruja estava lá no mesmo lugar.
Eu olhava para Celoide e pensava: teria sido ele mesmo que soltará aquela gargalhada!?
_Eu não volto para essa merda de guarda nem fudendo! Disse por fim Celoide.
Dali a pouco nossa hora terminou, Celoide foi acordar os soldados que fariam o próximo turno. Nós recolhemos para nossas quatro horas de sono. Dei uma última olhada para a coruja e a vi levantar voo e sumir na escuridão.
Quatro horas depois quando o soldado veio nos acordar, Celoide já estava de pé.
_Não dormi nada. disse pegando o fuzil, notei que ele pegara o meu fuzil ao invés do seu.
Voltamos para o posto. A temperatura baixara muito, o frio incomodava , uma névoa cobria todo o local, não se via quase nada a cinco metros de distancia.
_ não dormi nada, repetiu Celoide abrindo a boca num bocejo.
_Eu percebi, você parece meio confuso, pegou meu fuzil por engano... Celoide olhou para mim depois para o fuzil, em seguida tirou o carregador e me deu o fuzil, eu não entendi porque ele tirara o carregador mas fiz o mesmo e por via das dúvidas conferi para ver se estavam todas as munições ali. Depois fiquei a bebericar meu vinho para aquecer.
Dali a pouco ela chegou, pousou na mesma árvore, no mesmo galho seco.
_Sera que é a mesma coruja? Perguntei para mim mesmo.
_É a mesma, disse Celoide sem olhar para a árvore.
_Uh uhuu uh uhuu uh , piou a coruja confirmando.
Era ela mesmo, feia como o diabo. A hora foi passando nós três ali sentados calados apenas a coruja dizia alguma coisa de vez e quando. Chegou a hora da ronda, esperei que Celoide se levantasse e se dispusesse fazer a ronda, que nada, parecia dormir sentado.
_Entao, não vai fazer a ronda? Perguntei.
_Nao, respondeu,
_Tem que fazer, cara!
_Ate que para um soldado alterado você é bem caxias, disse-me irritado, não tem ninguém nos olhando para saber se fizemos ronda ou não, acrescentou, eu não vou se quiser, vá você. Eu não saio daqui, finalizou.
Peguei meu fuzil e fui fazer a ronda para me movimentar um pouco. Segui pela alameda dos galpões desci para o cemitério dos caminhões, foi então que eu ouvi, como num déja vu aquilo invadiu outra vez a minha alma:
_Ah haaa ha hahaaaaaah!
Meu sangue gelou, a gargalhada parecia mais sinistra aínda. Não pensei em correr, desta vez iria continuar minha ronda, foi então que ouvi outro som ecoar, era um disparo, cruzei o fuzil no peito e corri para o corpo da guarda.
Ao chegar lá vi Celoide, outra vez em posição de tiro .
_Eu acertei ela, eu acertei ela! Dizia olhando fixamente para a escuridão branca.
Eu não via nada nem ninguém.
_Voce atirou na coruja? Perguntei, mas olhando para a árvore vi a agourenta lá no mesmo lugar.
_Eu acertei ela, acertei a bruxa!
_Vem! Eu disse caminhando na direção que o fuzil apontava. Celoide trazia o fuzil pronto para disparar novamente, por via das dúvidas também engatilhei o meu. Nesse instante o alarme soou nós três quartéis.
Ao nós aproximarmos, pude ver uma massa caída no chão, não dava para saber se era gente ou se era bicho por conta da névoa, chegando mais próximo pude ver que havia alguém ali, caído.
_Sargento Perdigão ! Eu disse ao vê-lo deitado no chão com um buraco no peito e ensopado de sangue.
_Voce... atirou... mim, seu monstro, disse ele
olhando para Celoide, com dificuldade por conta do sangue que expelia pela boca.
Dali a pouco foram chegando soldados e sargentos da artilharia prontos para ação e prestar socorro, mas o sargento Perdigão já era morto.
Nesse instante a coruja levantou vou e deu um rasante sobre nossas cabeças soltando o seu canto agourento:
_Ah haha ha hahaaaaaah!
Fim!