Encurralados
Chovia bastante quando cheguei a varanda e tirei um cigarro do bolso, a rua não tinha saída então fumar a noite trazia uma paz que talvez se assemelha-se com o que aqueles homens do campo devessem experimentar com toda sua natureza e chatice. Quando a nova vizinha cruzou a porta correndo eu só observei, ela parecia chorar, mas não sei dizer ao certo com toda aquela chuva a doida deveria estar mais louca do que eu, sentou-se no meio da rua e desolada olhava de volta para casa como se um monstro a estivesse perseguindo, porém não demorou muito para que se levantasse e sumisse novamente por entre a porta da casa, eu ainda fumei mais dois cigarros na esperança da maluca voltar sabe-seláporque, mas só o silêncio da rua e o vento dizendo que já estava na hora de entrar deram sinalde vida.
Quando passei em frente à casa da maluca tudo estava fechado, não que fosse novidade, na verdade desde que chegaram poucas vezes vimos esses idiotas, minha mãe contou que eles vieram de outro país ou algo do tipo e que parece que estavam fugindo das lembranças da perca do único filho e sim a velha era uma máquina de fofocas misturada uma veia investigativa de causar inveja. A casa deles era enorme, talvez a maior de todo o bairro, mas destoavam de um bairro tão discreto, o jardim cheio de flores e com dois pinheiros na entrada, eles pareciam se destacar como um ponto vermelho numa folha branca, quando percebi que a mulher me olhava pela janela não tomei susto, porém só uma pessoa muito estranha ficaria olhando daquele jeito enquanto eu me virava e ia embora não antes de conferir e ela ainda estava lá.
Eu nunca gostei desse bairro, quando me casei achei que jamais voltaria a pisar nesta maldita rua, mas foi só um par de chifres, um juiz dizendo que precisariamos dividir tudo e uma maldita sensação de injustiça e lá estava eu aqui novamente, morando com minha mãe que sempre dizia que eu deveria ter quebrado a cara da minha ex-esposa, a velha apanhou tanto do maldito do meu pai que acreditava fielmente que o velho estava certo e desde que o maldito bateu as botas ela diz que toda mulher precisa é de uma boa surra.
A noite estava estrelada, não havia sequer menção de chuva quando puxei a cadeira de praia que usava na varanda, minha mãe dormia sempre após a novela e eu conseguia escutar seu ronco mesmo ela estando no andar de baixo, eu fumava sempre o mesmo cigarro, porém tirei do bolso um baseado e misturado com o sono e a ótima temperatura nem consigo dizer o momento que cai num pesado cochilo, mas como um trovão a porta ao lado de casa fez um estrondo tão forte que a surpresa maior foi apenas a velha continuar dormindo, a maluca estava na rua novamente, usando uma camisola branca e um rosto assustado eu dessa vez tive certeza que ela chorava, gritei umas duas vezes, mas era como se eu fosse invisível, a maluca sequer olhava em outra direção se não fixamente para a porta, quando voltou para dentro da casa eu deveria apenas esquecer e ir dormir, mas não sei dizer se estava chapado demais ou se houve outra explicação que me levou até a porta daquela mulher e ao bater primeiramente devagar sem sequer um único som no interior, me virei para ir embora, no entanto algo parecia me pedir para voltar, então batendo novamente e com força a porta abriu, confesso ter me causado um susto, a casa estava toda apagada e nenhum interruptor funcionou na cozinha, por mais de dois minutos me mantive parado na cômodo chamando e ninguém respondia, a cada segundo um frio na espinha me lembrava que alguma coisa ali não estava certo, conforme fui andando entre os cômodos uma luz na parte de cima oscilava como vela queimando, então lentamente subi as escadas pensando o quão burro aquilo parecia e como todo idiota morria tentando ser herói nos filmes, iluminando o que dava com o celular, ao chegar no corredor dos quartos ficou claro que não havia luz alguma e talvez fosse só eu querendo um afago mental, o primeiro quarto era de criança, cheio de brinquedos e fotos, era óbvio que aquele quarto era para o filho morto deles e que com certeza cultivavam ainda o luto mesmo mudando para longe, o quarto no meio do corredor tinha as paredes manchadas e cheirando a ferro enferrujado, tinha no meio do chão diversos símbolos que jamais saberia explicar, eu abri as gavetas de uma peça de madeira antiga e junto de facas e correntes um álbum de fotos com capa de couro me roubou a atenção, meu coração acelerou de tal forma que não conseguia ter controle nem das mãos e ao deixar o álbum cair espalhando as fotos eu peguei uma das faca e sai correndo em direção ao fim do corredor e no último quarto o cheiro de incenso era fortíssimo, mas diferentemente um ar de limpeza pairava o local e ao apontar a lanterna do celular la estava o marido na cama ou o que sobrou dele, havia tanta linha de costura entre suas junções que mais parecia um boneco de tricô, ao lado da cama sentada no chão com a cabeça por entre as pernas eu fui até ela lentamente e ao perceber minha presença um olhar me mostrou o que havia de pior no mundo, tanta dor, tanto ódio, mas naquele canto nada mais era que um animal indefeso que Deus sabe como revidou com tudo que o mundo lhe proporcionou de pior.
Quando a polícia chegou junto das ambulâncias eu a vi pela última vez enquanto era conduzida para uma viatura, ao me olhar ela trazia algo de diferente, mas inexplicável, parecia agradecer mesmo sem uma única palavra, enquanto isso minha mãe tinha todo o alfabeto do mundo para reclamar de como ela deixou a fofoca do ano passar.