O Primogênito - CLTS 19

O primogênito

- Uma incursão justo agora, às vésperas do Festival de verão!? - Kalan Wardan reclamava enquanto liderava a marcha de sua escolta. - Aquele velho tinha que mandar logo eu?

- Mais respeito com a vossa majestade rapaz! - Pediu Gerry, o mais velho dos soldados presentes. Líder do esquadrão. Não se conteve.

- Cale a boca, capacho! Ele é meu pai, eu o chamo como quiser! - Kalan Wardan respondeu asperamente. Seus homens riram.

Gerry se recompôs e manteve a cabeça baixa. Os quatro cavaleiros seguiam lado a lado. O príncipe e os seus dois escudeiros se destacavam com os adereços da realeza. Atrás deles vinham uma dúzia de cavaleiros em trote lento com armaduras comuns, espadas e lanças. Kalan olhou sobre seus ombros, com melancolia uma última vez e pode ver Luz da Manhã no horizonte. Sua cidade, sua casa, que estava sendo preparada para o festival. Apesar da distância, ele via claramente o reflexo do sol nascente refletido no tecido de cetim que ornava as torres do castelo.

- Esse ano ele vai abdicar. Tenho certeza! - O príncipe falou consigo abandonando a vista. - Ei, velho... - se dirigiu a Gerry. - Você é o escudeiro do meu pai, não é?

- Fui sim, senhor. Agora sou seu Con..

- Ele não falou nada sobre deixar o trono?

- Nosso rei está velho, é verdade. Mas ele ainda é o Magnar, o Um de sua época! - Disse com orgulho. - Ele ama seu reino muito mais que sua própria vida.

O Príncipe o olhou entediado.

- Isso é um "Sim", ou um “Não”?

- Tenho certeza que nosso rei é capaz de fazer isso, majestade. Se julgar que será o melhor para o reino.

O príncipe riu alto.

- É claro que fará! Ele não aguenta mais aquelas reuniões. A tensão com os Anões, o povo pendurado em seus ouvidos reclamando de tudo. Ele não tem mais idade para isso. Nem paciência.

- Nomeá-lo administrador do distrito comercial foi o primeiro passo para a sucessão do trono. - Um de seus guardas falou animado.

- Exatamente! - O outro concordou sacudindo a cabeça. - O Senhor está lidando diretamente com os Anões, o maior problema do reino.

- Em breve você terá que limpar minhas botas, velho! - O príncipe zombou com o peito estufado.

Gerry não falou nada, devolveu o olhar sarcástico, com um aceno de cabeça respeitoso. Estava preocupado com a missão que tinham pela frente, todas aquelas vidas estavam sob seus cuidados. O Rei o escolheu pessoalmente para guiar seu primogênito, e naquele momento ele ainda absorvia o peso da responsabilidade que tinha em mãos.

A marcha durou o dia todo. Hora mais rápida, hora mais lenta. O príncipe cantarolou a maior parte do tempo. No meio da tarde, chegaram no primeiro ponto de encontro determinado. Pararam para descansar à margem de um riacho. Os soldados montaram uma fogueira e aliviaram a carga dos cavalos. Kalan Wardan e seus dois escudeiros montaram uma pequena cobertura separada dos demais e lá ficaram. Dado a demora, o príncipe foi até Gerry buscar explicações.

- Meu senhor!? - Gerry foi pego de surpresa, estava à vontade numa roda de soldados. Todos se colocaram em forma.

- Cadê nossos reforços? - Kalan estava impaciente.

- Logo estarão aqui Senhor…

- Com todo esse tempo de preparo, eles ousam atrasar? Fazer a realeza esperar?

- Presumo que tenha acontecido algo Senhor, não é …

- Vamos sem eles! - Kalan disse desafiando o comando.

- Com todo respeito Senhor, não acho que seja a melhor decisão - Gerry disse com cuidado, com a voz humilde. - A partir deste ponto, estaremos muito distantes de qualquer cidade do nosso reino. Podemos nos deparar com batedores inimigos a qualquer momento. É muito arriscado marchar com tão poucos.- O príncipe não estava convencido, Gerry continuou. - Além disso, podemos usar esse tempo de espera para descansar e…

- Descansar!? Depois de um ‘passeio’ desse, seus homens precisam descansar? - Kalan sacudia a cabeça incrédulo, seus escudeiros riam em deboche. - Isso que dá nomear um bando de idosos como escolta. Mas, o que esperar de um rei velho, não é mesmo?

Gerry passou os olhos em seus homens e pode ver uma raiva crescente pairando no ar. O príncipe também percebeu e se deu por satisfeito.

-Descansem donzelas, os verdadeiros soldados estarão esperando as senhoras quando estiverem prontas! - Disse virando as costas e voltando para sua cobertura.

O sol já estava baixo quando batedores alcançaram o acampamento. Três cavaleiros cansados, entre eles Roy, outro escudeiro do príncipe. Gerry os recebeu. Pouco depois uma matilha se aproximou animada, causando alvoroço no acampamento, os latidos eram ouvidos de longe. Um grupo de aproximadamente trinta cães de caça, seus cuidadores e dez Arqueiros. Eram os reforços.

- Isso é minha escolta? Por isso estamos aqui o dia todo? - Kalan estava atônito. Ainda vestia a parte de baixo da armadura.

Depois de muita discussão entre os latidos dos cães, os batedores recém chegados, Gerry e o príncipe se afastaram para conversar longe de todo o caos. Kalan reclamava avidamente contra sua escolta, os batedores eram humilhados, até Roy, seu escudeiro que demonstrava um alto nível de adoração, se sentia mal pelas palavras que ouvia. Quando puderam falar contaram que a tensão entre os Homens e os Anões estava em níveis máximos, depois que um grupo de nobres cederam sua influência no reino, por ouro e joias. O Rei agiu rápido, fechando acordos e tratados. Entretanto, segundo Roy, não conseguiu mais que um fôlego. Passou alguns minutos falando sobre os acordos, a maioria se tratava de futilidades, títulos e cargos figurativos. O acordo mais significativo foi a inclusão de uma escolta de Anões à incursão. O príncipe não gostou da ideia até saber de quem se tratava.

- Gorinbrann Mobur !? - Seu humor melhorou.

- Sim Senhor! Eu estava presente quando o rei fechou um tratado com o Senhor Anão. Mobur terá metade de qualquer coisa que essa expedição conseguir, além da honra de escoltar a realeza.

- Ele é de confiança? - Gerry perguntou preocupado.

- Ele é o comerciante mais rico do reino, esta disputa de poder entre as raças atrapalha diretamente o seu comércio.- Kalan respondeu.

- Espero que ele não apareça com muita pompa. Temos que manter a descrição.

- Foi acordado uma guarda pequena mas, poderosa para o príncipe e reforços para o Rei, caso precise. - Roy fez uma pausa pela expressão aflita de Gerry. - Por isso a baixa qualidade da nossa escolta…

- Vossa majestade teme um ataque iminente! - Gerry concluiu

- E manda cães para me proteger?

- Na verdade meu Senhor, se me permite dizer minha opnião. Essa história de Incursão foi para protegê-lo. - Roy falou com cautela.

- Proteger a linhagem talvez, não a mim. - Kalan disse a contragosto, depois de um momento de reflexão

- Mas, mandar um Anão como escolta ? - Gerry estava muito incomodado

- Fique tranquilo Gerry. Meu pai sabe em quem pode confiar. - Kalan disse o encarando. - Em um momento tão crítico como esse, o rei se cerca dos seus melhores homens… e você está aqui, com seus ‘preciosos’ cavaleiros … junto dessa ralé. - Gerry baixou a cabeça, ouvia em silêncio. A cada frase, o príncipe dava um passo em sua direção. - Sabe o que isso significa Gerry? - Kalan parou e pôs a mão em seu ombro.- Seu ‘querido’ rei, te despreza.

kalan os deixou rindo. Gerry respirou fundo estava nitidamente constrangido, os soldados se entreolharam. Roy começou a falar sobre as alterações no plano original e a atualizá-lo sobre o destino e as condições do novo acordo.

Os mapas foram reavaliados, datas foram alteradas e novas rotas escolhidas. Mais tarde, Gerry voltou para o acampamento distribuindo ordens. Era início de noite, kalan notou a movimentação e se aproximou, estava totalmente sem armadura, finalmente. Viu os homens desmontando o acampamento, equipando os cavalos e vestindo-se. encontrou Gerry no meio do alvoroço.

- O que está acontecendo?

- Voltaremos à marcha Senhor. - Um de seus homens o ajudava com o peitoral de sua armadura pesada.

- Vamos marchar a noite?

- Não quero ser surpreendido por nenhum Anão, meu Senhor. Vamos antecipá-lo.

- Estou à mercê de idiotas… - Kalan disse depois de algum tempo sacudindo a cabeça. - Gorinbrann Mobur é meu amigo pessoal! Meu pai… o seu Rei o envolveu nisso. Quanta tolice!

- Com todo respeito Senhor, prefiro não correr riscos.

- Não parece! Daqui em diante não era perigoso? E agora você quer marchar a noite.

- Não há oque temer Senhor…

- E sou eu o covarde aqui? - Kalan elevou a voz com raiva. Chamando a atenção de todos. - Como uma toupeira como você é líder de alguma coisa? Agora entendo por que meu pai o mandou para longe. Infeliz é minha sorte de estar entre bufões. - O príncipe se virou e foi para sua tenda, se preparar.

Os soldados se entreolharam incomodados, Gerry percebeu e ordenou que continuassem seus afazeres. Algum tempo depois, a maioria deles já estavam prontos. Kalan e os seus, agora três escudeiros, apareceram montados e totalmente equipados, na frente de todos.

- Estão descansadas senhoras? - Gritou tirando o elmo, prendendo-o na cela. - É assim que um soldado se alimenta! - Pegou um pedaço de carne seca do alforje e mordeu. - E é assim que ele descansa! - Bateu em seu cavalo e saiu à galope enquanto mastigava.

Em completo silêncio, Gerry deu a ordem e suas tropas iniciaram a marcha lentamente. Seis duplas foram mandadas em direções diferentes como batedores. Os cães e os seus cuidadores ficaram para trás. A Lua cheia pairando num céu nú, era o suficiente para dispensar as tochas. Logo os latidos ficaram distantes demais para serem ouvidos. Os cavaleiros seguiam em terreno aberto o grupo do príncipe bem a frente do grupo maior, liderado por Gerry. Os batedores sumiram das vistas. Kalan não olhava para trás, um dos batedores que passou por eles o informou que o destino era Vale Rajado. Cansado de discutir ele só concordou e ajustou a direção. Passou o caminho caçoando de sua escolta junto de seus escudeiros. No auge da noite, os dois batedores que estavam na frente apareceram no horizonte voltando a galope. Gerry percebeu que ao cruzarem com o príncipe, foram entrevistados e logo depois Kalan e seu grupo dispararam na frente enquanto os batedores iam ter com Gerry.

- Anões, senhor!

- Mobur?

- Sim senhor, reconheci o estandarte.

Gerry olhou para seus homens preocupado, deu o sinal para o reagrupamento. Continuaram o trote observando o príncipe à distância.

Kalan chegou no alto de uma colina e viu a escolta dos Anões, duas carroças com tochas rodeadas de soldados marchando lentamente. Olhou para trás pela primeira vez naquela noite e riu com superioridade quando viu sua escolta tentando alcançá-lo. Agitou seu cavalo e venceu a distância entre os Anões rapidamente.

- Quem se aproxima? - Um dos Anões gritou ao ouvir o galope. As tochas atrapalhavam a visão.

Eram nove soldados, todos ocupando as carroças, equipados com armaduras e armas de alta qualidade. As duas carroças eram puxadas por porcos gigantes. Estavam todos com as armas em punho e tensos.

- Gorinbrann Mobur ? - Kalan perguntou parando a meia distância, reconheceu o estandarte nas carroças.

- Que satisfação meu Senhor. - O Anão que segurava as rédeas se levantou surpreso reconhecendo sua voz.- É o Senhor mesmo? - Quando Kalan saiu das sombras o Anão relaxou e abriu um sorriso debaixo do elmo.- Que nunca falte forças em seus braços! O que está fazendo aqui meu amigo? Era para te encontrar nas fronteiras…

- Gerry achou melhor nos unirmos antes. Aquele velho é teimoso. - Kalan desmontou e cumprimentou seu amigo com respeito. Todos os Anões fizeram reverência para o príncipe.

- Verdade! Onde ele está? Como sua escolta o deixa sozinho? - Mobur se assustou quando percebeu que o príncipe estava só com sua escolta pessoal.

- Estão atrás de mim. Aquelas lesmas não conseguem acompanhar meu trote rápido - Ele e seus homens riram.

- Gerry ? - O Anão perguntou surpreso. Conhecia-o bem

- Veja ! Lá estão os inúteis. - Kalan apontou o alto da colina. Não se via mais do que a silhueta de cada um.

Os cavaleiros de Gerry se puseram lado a lado. Metade desceu em direção a eles num galope rápido.

- Aprenderam a correr. - Kalan disse achando graça, montando novamente. - Vamos lorde Anão, me conte como anda o comércio nesses dias tão conturbados.

- Sim .. sim, majestade. - O Anão olhava da colina para seus homens preocupado, nenhum deles pareciam seguros. - Meu senhor… não acha que estão nos atacando?

- O Gerry? Isso é ridi… - Dessa vez Kalan foi interrompido.

- AS ARMAS! - Gorinbrann Mobur gritou assim que viu que todos os Homens sacaram suas espadas. Todos usando suas armaduras completas.

Flechas caíram do céu, uma para cada anão que segurava as rédeas. As demais, nos porcos. Ambos correram grunhindo, ao sentir os virotes. Os Anões se atiravam de qualquer maneira para fora das carroças e rolavam no chão. Assustado, Kalan Wardan se virou, viu a cavalaria em fúria se aproximando rápido. Outra onda de flechas e desta vez os alvos foram os cavalos do príncipe e de seus guarda costas. Ao mesmo tempo que ele sentia o chão chegando mais perto, as espadas começaram sua canção sangrenta, ao seu redor.

O príncipe não conseguia dizer uma palavra. Se levantou rapidamente, sacou duas espadas curtas e ficou imóvel, assistindo os cavaleiros massacrando os Anões, a maioria ainda tentando se levantar. Mobur, com uma flecha cravada no elmo, lutava deitado no solo girando seu machado, até que uma lança furiosa entrou em sua guarda e o cravou no chão. Os escudeiros do príncipe ainda conseguiram correr, e isso foi tudo que fizeram. Morreram cheio de fúria nos olhos. Kalan foi o único que sobrou. Gerry desmontou e foi caminhando até seu Senhor, com a espada rubra em punho e a armadura negra coberta de sangue.

- Gerry o que … - Kalan começou a falar mas, Gerry enterrou a espada em sua barriga.

O príncipe caiu de joelhos segurando o cabo, sangue saiu de sua boca.

Gerry retirou o elmo e segurou os cabelos do príncipe, forçando-o a encará-lo.

- Isso é tudo que você merece, "alteza!"- Kalan tremia diante do soldado, seus cabelos brancos, suas cicatrizes, sua expressão selvagem, carregavam centenas de batalhas e vitórias. - Esse é o trono que seu pai lhe deixou.- O príncipe sufocava em desespero, ainda sem entender o que estava acontecendo. - Não me entenda mal… Sou apenas um servo seguindo ordens. - Gerry não escondeu a satisfação que teve ao ver os olhos do príncipe encherem de lágrimas. - Parece que você não é o herdeiro que meu amado rei esperava. - Um de seus homens se aproximou e lhe entregou um machado curto dos Anões. - Seu pai prefere matá-lo à vê-lo rei. E eu concordo com ele.- Ergueu a sobrancelha.

Terminou cravando o machado dos Anões em seu rosto. Em seguida seus homens começaram a se ferir intencionalmente.

Alguns dias depois, no Festival de Verão, o Rei muito impactado de luto, diante do caixão aberto de seu filho, no pátio da igreja central tomado por toda gente, lamentou profundamente a morte de seu primogênito. Fez um discurso emocionado perante os súditos, condecorou os guerreiros sobreviventes do ataque. Todos com curativos e faixas pelo corpo, como prova da sorte que tiveram ao saírem vivos do ataque. O Rei jurou vingança aos Anões que emboscaram o príncipe e seu grupo de caça. O povo chorou, gritou, aplaudiu fervorosamente e odiou os Anões.

Tema: Política.

Marlon A A Souza
Enviado por Marlon A A Souza em 15/05/2022
Reeditado em 16/05/2022
Código do texto: T7517039
Classificação de conteúdo: seguro
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