A maldade humana.
1
Bastante animada, a professora Marilia havia acabado de entrar na sala da turma do terceiro ano. Os alunos, por outro lado, mal perceberam quando ela entrou na sala, porque, amontoados em um canto da sala, discutiam sobre uma ex-colega, morta por um amigo.
Fim trágico por conta de um triangulo amoroso, diziam as bocas fofoqueiras e redes sociais.
Um jovem rapaz, sem perceber a aproximação da professora, dava sua opinião de forma bem energética:
– Ela é a culpada! não pode brincar com homem, não. Ela deveria ter escolhido apenas um, mas quis ser esperta e acabou pagando por isso.
–Acredita, então, que a atitude dela justifica sua morte? – Perguntou a professora.
A turma se calou ao ver a professora. E o jovem apenas abaixou a cabeça, envergonhado.
– Sentem-se todos – ordenou a Professora.
E, querendo dar fim ao assunto, começou:
– Me chamo Marilia. Sou professora de português, mas gostaria de começar contando uma historia. Para alguns verdadeira, para outros estória. De todo modo, não importa sua veracidade, mas sim a mensagem que ela passa, então vamos começar:
2
O Murmurinho tomava conta dos corredores do Colégio Estadual D. Pedro II, na cidade de Mesquita – município caçula do Estado do Rio de Janeiro.
Eder Farias, de dezesseis anos, aproximou-se de um grupo de amigos para tentar descobrir o que estava acontecendo.
– Vanessa esta desaparecida – lamentou Isabela.
– Deve ter dormido na casa de alguém! – afirmou outro aluno.
– Do jeito que é safada, deve estar dando – Eder opinou.
Ao cargo que Isabela, incomodada com o comentário, rebateu:
– Cruzes, Eder! Todos preocupados com a garota e você me solta uma grosseria dessas!
Eder sorriu e continuou a falar, mesmo que nenhum dos presentes quisesse ouvir.
– Vocês só podem estar de sacanagem. Já viram as roupas que ela usa? Sempre gostou de chamar a atenção de macho, isso sim! Postando foto de biquíni nas redes sociais, rebolando em baile funk com aqueles shorts enfiados no rego. Ela nunca prestou. Com certeza conheceu alguém na internet e estar transando.
E finalizou:
– Vocês estão se preocupando a toa.
Isabela sentiu o sangue ferver e, sem pensar, deu um tapa em Eder. Este revidou a agressão com um chute nas pernas de Isabela, que caiu no chão.
Eder ensaiou o segundo chute, mas foi impedido pelos colegas.
– Sai daqui cara! – esbravejou um, o empurrando.
Os colegas ajudaram Isabela a levantar, enquanto ela tremia e chorava. Já tinha de lidar com o desaparecimento da amiga e agora isso.
O que mais faltava lhe acontecer naquele dia?
3
Eder saiu cedo da escola e, para passar o tempo, parou na praça no centro da cidade. E, ainda pensando no caso, do celular, acompanhava as atualizações sobre o mesmo. A maior parte compartilhava fotos de Vanessa com o texto:
“Desaparecida desde 22/12/2016.
Vestia minissaia preta e blusa branca.
Vista da ultima vez na rua da serra.”
Ela estava gostosa naquela foto, pensou ele. Usava um vestido curto azul de tirar o fôlego. Pena que ela nunca o quisera. Isso o irritava.
Ela não poderia andar por ai com aquelas roupas; com aquele jeito de oferecida e depois negar dar prazer a ele. Vanessa era mesmo uma safada que gostava de se fazer de difícil.
Eder continuou vendo as postagens de seus contatos quando se deparou com uma feita há alguns segundos atrás pela irmã da desaparecida:
“Agradeço a todos que ajudaram a procurar minha irmã, mas é com pesar que venho informar que ela foi encontrada sem vida.”
O texto que seguia dizia algumas coisas mais. Desejos que deus a protegesse e tudo mais. Eder olhou para o céu, levantando-se para ir embora, e deu um sorriso.
– Se estivesse comigo estaria viva. Sou um cidadão de bem, mas ela preferia ficar com qualquer um. Teve o que mereceu.
4
No dia seguinte, vazaram as informações de que o copo foi encontrado em um matagal com sinais de violência sexual com marcas fortes no pescoço. A comoção na cidade foi geral. Alguns berravam que o responsável deveria pagar com a vida. Outros que ele era um monstro.
Mas Eder continuava com a ideia de que isso só ocorreu porque ela era uma menina que gostava de mexer com os homens.
Em seu enterro, cemitério municipal estava lotado. Lágrimas. Raiva. Muitos elementos faziam presença naquele triste palco. Todos pareciam inconformados, mas o pai de Vanessa era visivelmente o mais abalado.
Alguns amigos da escola estavam dentro da sala, incluindo Isabela que chorava bastante, apoiada ao ombro de um amigo.
Quando chegou, Eder se aproximou do caixão e olhou para o corpo jazido. Ela parecia estar dormindo; suas feições passavam certa paz. E, mesmo morta, ela continuava bela.
Ela estava morta, mas Eder não conseguia deixar de pensar o quanto ela estava gostosa, naquele vestido vinho. E, não se aguentando, ele sussurrou no ouvido de um colega:
– Rapaz, como ela tá morta!
Ao ponto que o outro lançou um olhar envergonhado para Eder e disse:
– Isso é a coisa mais sem noção que você já falou, cara.
– Ah para, Vinicius! A vadia gostava tanto de transar que tenho certeza que ela me agradeceria se montasse nela aqui mesmo.
Sem reação e não acreditando que ouvia aquelas palavras, o colega se afastou, deixando Eder sozinho com a visão de Vanessa.
Ele mordeu os lábios e ficou encarando aquele corpo morto. Até que se percebeu tendo uma ereção, só de se imaginar violando aquele corpo.
5
Naquele momento, as pessoas fizeram uma fila para se aproximar do corpo, a fim de se despedirem de Vanessa. Eder viu, naquilo, uma oportunidade de sentir aquele perfume de sexo que a garota sempre teve.
Todos tocavam as mãos da garota. Alguns a beijavam o rosto. E, quando chegou a vez de Eder, ele não conseguia mais se conter, de tanto tesão que sentia. E, contendo os impulsos, ele se aproximou calmamente do corpo da ex-colega para sentir o seu cheiro e a olhar de perto.
Mas, quando ele estava com seu rosto quase colado ao dela, ela abriu os olhos – totalmente brancos – e, de imediato, ergueu a mão cadavérica até seu pescoço. Eder não conseguia acreditar. Aquilo não poderia estar acontecendo. Só poderia estar delirando.
Mas Vanessa estava de olhos abertos. Também sorria um sorriso perverso para ele. E, quando Eder imaginou que iria desmaiar, Vanessa soltou o seu pescoço, fazendo-o cair para trás.
Todos o encaravam. E Eder respirava aceleradamente.
Ninguém pareceu ver nada, senão um garoto que, depois de se aproximar do corpo de Vanessa, caiu no chão. Não suportou perder a amiga, poderiam estar pensando.
Eder correu. Saiu do funeral, sem olhar para trás, e correu até sua casa. Ainda sentia os cheiros das flores depositadas no caixão e, com náuseas, foi direto tomar um banho.
Ao tirar a roupa, notou que o pescoço estava com vermelho; com visíveis marcas do estrangulamento. Então, aquilo não poderia ter sido somente a sua imaginação.
Entrou no chuveiro e se ensaboou diversas vezes, inutilmente tentando tirar da pele o cheiro da morta.
6
Teve dificuldades para dormir naquela noite. Sua imaginação o levando de volta para o que aconteceu no velório.
Todo o farfalhar de folhas o fazia levantar assustado. Acreditava que Vanessa vinha atrás dele. Quando pegou no sono, já às exatas três horas da manhã, teve pesadelos contínuos. E, quando acordou, na manhã seguinte, estava encharcado de suor e lágrimas.
Resolveu não ir pra escola aquela manhã. Assim, passou o dia inteiro dentro do quarto, guardando o tempo para tentar entender o que havia acontecido, no dia anterior.
Só se interrompeu com o barulho que a mãe fazia, na cozinha. Estava com fome e, por isso, resolveu ir até ela.
– O que temos para jantar mãe? – perguntou interessado.
– Que voz feminina é essa, filho?
– Não sei do que senhora está falando, mãe.
A mãe dele se aproximou e o examinou.
– Seus peitos estão crescendo. Você está tomando alguma coisa?
– Já disse que não sei do que você está falando! – Eder rebateu, sem paciência, dando-lhe as costas e voltando para o seu quarto.
No espelho, não notou nada de diferente. A mãe só poderia estar delirando também. O que está acontecendo com o mundo, pensou.
7
Mas, no dia seguinte, a mãe insistiu com aquela história. E, mesmo que Eder não percebesse nada de incomum, em seu corpo, a mãe lhe falava que suas sobrancelhas estão maiores, sua boca está mais carnuda, e seus seios seguiam crescendo.
Como Eder pensara, aquilo poderia realmente ser loucura da mãe. Contudo, outras pessoas o diziam o mesmo. Todos notavam as diferenças que seu corpo sofria, todos os dias, à olho nu.
Chegaram a imaginar que um médico poderia imaginar o que estaria acontecendo. Um transtorno hormonal, talvez.
Mas o medico foi igualmente inútil. Os exames mostraram um aumento significativo de estrogênio em seu corpo, mas bem como sua testosterona estava em níveis muitos baixos. Mas nada de saber o motivo daquela repentina mudança.
Cada dia que passava mais ele se aproximava de se tornar uma mulher. A mãe, que era a mais alarmada com toda aquela situação, chegou a chamar por um padre para lhe fazer uma visita.
Este, contudo, quando entrou no quarto, viu uma linda adolescente. E, mesmo que o jurassem que aquela era, na verdade, Eder, o padre saiu da casa, às pressas, gritando que estavam zombando de sua cara e que aquela era o tipo de brincadeira que não tinha graça alguma.
Naquela noite – como em muitas outras – Eder ouviu gargalhadas, no meio da madrugada. Aproximadamente às três horas. E, embora pudesse parecer de algum vizinho ou da rua, Eder podia jurar que, na verdade, era Vanessa que ria dele.
8
Os dias subsequentes foram complicados. Eder se via depressivo; sem vontade de sair de casa. Seus amigos o abandonaram, acreditando que ele estava tomando medicamentos para se transformar numa mulher. Era um veado! Isso sim!
O apoio veio do onde ele menos esperava. Isabela, a menina que ele havia agredido e maltratado, logo na morte de Vanessa. Ela o visitava todo dia, tentava anima-lo. Foi ela quem o convenceu a ir ao centro da cidade para lhe comprar um vestido. Eder recusou, ele não iria usar um vestido, ele era homem.
Isabela calmamente o levou até o espelho e disse:
– Você ainda vê um homem no espelho, talvez porque o espelho reflita sua alma. Mas todo mundo que te olha vê uma linda mulher. E você precisa aceitar isso.
Mesmo contrariado, Eder acabou cedendo ao pedido e colocou o vestido. No espelho, viu sua antiga versão vestida com roupas femininas. Então, por um momento, fechou os olhos e deslizou suas mãos pelo próprio corpo. Sentiu o cabelo até a altura da nunca o corpo torneado, criando uma imagem mental de como as pessoas o viam. Para a sua surpresa, não se sentiu mal com isso.
E, pela primeira vez depois de tempos, Eder sorriu.
9
Na rua, por outro lado, as abordagens grosseiras que recebia dos homens começaram a o incomodar. Em festas, homens bêbados a tentavam beijar à força para, depois, a xingarem por não assumir uma postura submissa que, segundo eles, as mulheres deveriam ter.
Mas nada foi pior do que quando o namorado de Isabela descobriu a história de Eder; soube que a amiga de sua namorada era, no fundo, um homem. Elas estavam em um bar, quando o rapaz chegou. Isabela foi o cumprimentar, sorridente. Mas seu sorriso durou somente o tempo de o homem tirar o revolver da cintura e disparar três vezes, em sua direção.
– Mulher minha é que não vai me trair com umas aberrações como esse veado! – ele gritou olhando para Eder. Apavorados, todos no bar ouviam, enquanto saiam correndo do ambiente.
Eder podia jurar que morreria ali, igualmente. Teria sua história de superação e aprendizado finalizada pelo calor de um projétil de revolver. Mas o homem, depois de perceber que Isabela estava morta, levou o cano da arma contra a boca e puxou o gatilho.
– Mas ele era um rapaz tranquilo. A namorada é que deve ter aprontado alguma para merecer isso! – falaram, entre tantas coisas mais, as pessoas nas ruas e nas redes sociais.
E Eder, ouvindo todos aqueles preconceitos, entendeu que, na morte de Vanessa, era ele que estava daquele outro lado do tabuleiro. Antes do acontecimento com seu corpo, ele pensava exatamente igual.
10
Terminada a história, os alunos ficaram em silencio. Todos encaravam a professora Marilia. Esta, então, finalizou:
– Vou ao banheiro. Aproveitem um tempo para interpretarem a história que lhes contei.
Mas, antes de deixar a sala, ouviu o mesmo garoto que culpava a menina pela sua morte dizendo que só ouviu besteira que continuava pensando a mesma coisa.
E ela, calmamente, se dirigiu ao banheiro. Fechou a porta, às suas costas e, olhando no espelho, era a figura de Eder que se via, no reflexo da professora Marilia.
Ao seu lado, estava a imagem de Vanessa, trazendo um sorriso de cumplicidade no rosto. E Marília, respondendo o sorriso para a amiga, disse:
– Tem um aluno na minha turma que precisa aprender uma lição.
Fábio Onéas