GENTE BATUTA DEMAIS DA CONTA.

A pandemia do coronavirus trouxe a crise, o desemprego, os preços das coisas nas alturas. Sandoval , de 62 janeiros, abriu o guarda chuvas. A aposentadoria sonhada não vinha. A fila na agência de emprego. A barriga roncando pois não tinha tomado café. Não tinha nem tomado ônibus para o centro da cidade pois estava Durango Kid. Acordou às quatro da manhã e encarou uma hora de caminhada. -"Quero ser o primeiro a chegar na agência de emprego." A avenida vazia. A padaria aberta 24 horas. Um cheiro delicioso de pão quentinho. Ele abriu a carteira. -"Só documentos." Os bolsos vazios. Ele engoliu em seco. O curriculum no envelope pardo. Ao chegar na agência, já havia quatro gatos pingados na fila. -"Essa gente nem dormiu?" O anúncio do jornal pedia três vagas de porteiro. Sandoval era jardineiro mas fazia bicos de garçom. O restaurante do Farol tinha reduzido o pessoal devido ao fraco movimento da casa. Sandoval foi um dos muitos dispensados .

- "São três vagas e sou o quinto da fila. Já me lasquei." A fila aumentando. -"Eu trabalhava num açougue. Fechou o açougue e fiz um acordo." Disse o rapaz a frente dele. -"Como assim, fez acordo?" O rapaz explicou. -"Sim. Eles entraram com o pé, eu com a bunda." Sandoval ficou sério. -"Moço. O desemprego tá grande. Fazer acordo é... agora que eu entendi. Seu acordo foi um pé na bunda?" Dois homens chegaram, engravatados. Sandoval observou a vestimenta deles, na fila. Sapatos sociais brilhando e óculos escuros. -"William. Igual a você, eu terminei o curso de vigilante em Campinas. Uma semana de treinamento puxado e específico para portaria e vigilante. Paguei três mil reais. Estou cadastrado nas agências e empresas de monitoramento. Aprendi a operar Nextel, portaria a distância, monitor, câmera, cerca elétrica, armas, choque elétrico, spray de pimenta, técnicas de auto defesa, brigada de incêndio, rádio amador, Word, Excel e Power Point. Não vejo ninguém mais qualificado que nós." Sandoval disse aos que estavam na sua frente. -"Turma, melhor a gente ir embora pois duas das vagas são desses caboclos aqui. Num entendi nada do que falaram, esse tal de Nestéu, Esséu... tão parecido com aqueles cabras daquele filme, Os Homens de Preto." Oito horas. A agência de empregos abriu. Um rapaz distribuiu senhas. Uma senhora olhava as carteiras de trabalho. Ela mediu o homem dos pés a cabeça e sorriu. -"Moça, minha mulher tá parada, era costureira.mas tá doente. Tenho três bocas pra alimentar. Dá uma força pra mim." A senhora foi até o fim da fila. Ela voltou, recolhendo os currículum vitae. -"Moça, esses dois, aqui atrás de mim, se forem candidatos a vereador eu voto neles. São qualificados demais. Deixa os "curríco" deles pra ler depois pois vai demorar. É gente batuta demais da conta " Eles entraram na agência. Todos preencheram uma ficha. -"Não sei porquê escrever os números de todos os documentos aqui. É só a moça tirar um xerox." Sandoval foi ao bebedouro pela terceira vez. -"Agência chinfrim. Nem tem café e bolacha" A chamada para a entrevista. Um a um, os candidatos eram dispensados. -"O salário não compensa. Gente, boa sorte." Disse um rapaz, saindo revoltado. Os engravatados entraram na sala. -"Duas vagas já eram. Esses serão contratados." Para surpresa de Sandoval e dos outros, os rapazes engravatados saíram cuspindo marimbondo. -"O posto de trabalho é péssimo, salário idem. Não vou trabalhar em galpão de usina nunca na vida. Meu patamar é outro." A voz da senhora da agência. -"Senhor Sandoval da Conceição." Ele se levantou. -"Com licença." A moça indicou a cadeira. -"Bom dia." Senhor Sandoval. Seu currículum é bom, encaixa no perfil da empresa. A vaga é sua." Ele se esforçando pra não sorrir e dar um abraço naquele anjo a sua frente. -"Bom. Isso é bom" A moça falou meia hora sobre a empresa, os locais de trabalho, benefícios, uniforme, etc.... -"Eu aceito sim. Quero não, preciso." Ele tremia quando cumprimentou a moça. O endereço da empresa no bolso. -"Estou empregado. Glória a Deus." Eram quase onze horas quando saiu da agência. -"Conseguimos, senhor Sandoval. Vamos trabalhar na usina antiga da Marechal. " Disse o rapaz que era o primeiro da fila. -"Uai, Raimundo. Aqueles rapazes foram dispensados porquê cargas d'água?" Raimundo sorriu. -"Salário baixo, pra eles. Pra mim que estou há um ano parado é muito bom. Melhor pingar que secar." Raimundo abriu o fusquinha. -"Vamos? Não sei onde o senhor mora mas te dou uma carona." Sandoval agradeceu. -"Raimundo, você é gente batuta demais da conta. Deus abençoe." Sandoval e a família feliz. Ele fez o exame admissional, um dia depois, após visitar a sede da empresa. O uniforme. A abertura de conta bancária. O livro de regras. Sandoval e Raimundo se amor. -"O terceiro rapaz foi designado para um condomínio. Tinha mais experiência que nós." O supervisor, no outro dia de manhã, levou os novos funcionários até a usina abandonada. -"Eita, é longe. Saímos da cidade há quinze minutos." A estrada de terra. O canavial. As dependência da velha usina. Raimundo faria o turno diário, Sandoval ficou com o noturno. -"O Péricles, que vai sair da empresa, vai ensinar tudo a vocês. Perguntem a ele, se tiverem dúvidas. Aqui é um sossego danado." O supervisor levaria Sandoval ao trabalho, todos os dias às dezoito horas . Ao menos ele não se preocupada com transporte. Péricles ensinou tudo. -"Durante o dia passa um ou outro, gente da guarda ou da usina mas a noite não tem ninguém. Só cantar de sapos e grilos. Tragam celular ou rádio. Uma blusa ou coberta na bolsa, caso esfrie de madrugada. Lanterna sempre, carregada. " Primeiro dia de trabalho. Sandoval e o supervisor chegaram a usina. Raimundo se despediu e retornou com o supervisor. Sandoval saiu da guarita e deu uma volta. A usina ali perto. A represa. As chaminés e caldeiras. O galpão com maquinários. O canavial. -"Lugar lindo, paraíso. Gostoso aqui, só passar o bastão de vez em quando na guarita. Moleza." Ele pensou. Tirou fotos com o celular. A noite caiu de repente. -"O último rapaz ficou duas noites na usina. Apostei e perdi duzentos reais pois disse que ele duraria um mês. Sandoval é nosso último candidato pois ninguém consegue trabalhar a noite nesse lugar mal assombrado. As casas da colônia da usina estão fechadas há trinta anos, dizem que estão assombradas. A empresa vai desistir e deixar o turno da noite vago se não der certo dessa vez." Disse o supervisor a Raimundo, enquanto o levava pra casa. . -"Porquê, senhor? É tão tranquilo na usina. O que tem de ruim a noite?" O supervisor arregalou os olhos. -"Assombração. Coisa pesada mesmo. Gritos, uivos, correntes e ferros arrastando, espíritos vagando. Um horror." Raimundo sentiu pena de Sandoval. O vigia da noite pitou um cigarro, após o jantar. Uma escuridão total. A luz da guarita acesa. O rádio tocando Sérgio Reis. -"Uai. Fazia tempo que eu não escutava coruja e sapo. Aqui tem morcego demais, deve ser por causa dos pé de frutas. Vou ver se o supervisor deixa eu dar uma pescadinha na represa, outro dia." Ele falava sozinho. Algo passou na frente dele, veloz. Sandoval sentiu uma fria corrente de vento. -"Bá noite, moço." Sandoval colocou os óculos. A mulher vinha em sua direção. A roupa molhada. -"Boa noite. Moça, não se refresque na água pois é funda a represa." A moça se aproximou. -"Muito calor." Sandoval ofereceu uma banqueta para a moça. -"Você tem olhos lindos, azuis. Mora aqui?" A moça deu uma gargalhada. -"Sim. Na represa." Sandoval segurou a mão dela. -"Sou o vigia novo. Fica a vontade pois é muito bom conversar, prosear, passar o tempo." Ela prestou atenção na música de Zezé de Camargo e Luciano. -"Gosto dessa música. É o Amor." Disse a moça. Sandoval começou a fazer outro cigarro. -"Moço, vou indo." Sandoval entrou e ia oferecer um café pra ela. -"Uai, sumiu a mulher? Andar só nesse escuro é perigoso mesmo, pode tropeçar numa pedra ou pisar em juá." Um uivo ao longe. Sandoval mudou de estação no rádio. -"Campeonato carioca. Vasco." Ele escutou alguém o chamando. -"Sandoval." Ele olhou em volta. A lanterna acesa. -"Vinte e uma horas, não passa o tempo aqui." Ele pegou o facão e foi até o canavial. -"Deu vontade de chupar cana. Há trinta anos não faço isso." Uma mão segurou seu pulso. -"Guarda? Temos que verificar o óleo do trator. Sou Zeferino, o motorista do dono da usina, o marechal Pitágoras." Sandoval se virou. -"A cana fica pra depois, uai. Vamos no galpão. O novo vigia acendeu as luzes. Os dois homens olhavam os veículos abandonados. -"É o Agrale ou o de capota? Aquele está com o arado." Zeferino fez o trator com arado funcionar, fazendo ligação direta. -"Moço, deu certo. Vou trabalhar na área onde o capataz vai plantar a próxima safra. Obrigado pela ajuda." Sandoval acenou quando o trator saiu do galpão. Na guarita, tomando o último gole de café pois os olhos ameaçavam fechar, Sandoval via as luzes do trator de Zeferino, ao longe, indo e vindo. -"A noite é tranquilo, não vêm ninguém. Supervisor mentiroso pois isso tá movimentado até demais." Um cochilo rápido na cadeira e uma varrida pra passar o tempo. Três da manhã. Um barulho estranho na direção da caldeira. Sandoval pegou a lanterna e foi verificar. O homem passou pela carreira de casas da colônia da usina. -"Boa noite. É o novo vigia.":O homem, negro e descalço, fazia um cigarro de palha, sentado no umbral da porta número sete. Sandoval deu um grito. -"Meu Deus, não acredito. O senhor pita Andaraí? Essa marca de fumo é do tempo de meu avô Totonho." O homem estendeu o cigarro. Sandoval pegou o cigarro e deu uma tragada. -"Nossa. Que maravilha." O homem tossiu. -"Você está indo na moenda. A sinhá manda os pretos moerem cana de madrugada. Ela gosta de tomar caldo de cana a noite." Sandoval sorriu. -"Gente louca, cheia de manias." Sandoval retornou a guarita. -"Vou me acostumar com isso, preciso desse emprego, uai. Será que tem ainda o programa de rádio do Chico Anísio, de madrugada? Não, o Chico já morreu. " Sandoval percebeu alguém na janela e se virou. -"Tinha o Coalhada, o Azambuja, o Painho e o Alberto Roberto." Sandoval se levantou da cadeira. -"Você quer me assustar? A porta tá aberta, rapaz. Isso mesmo, tinha ainda o Bento Carneiro, o vampiro brasileiro." O rapaz se virou e saiu da janela. Sandoval o procurou, sem sucesso. O dia raiou. Sandoval preparou a mochila pra ir embora. Ele andou por quinhentos metros e abriu o grande portão. Dez minutos para as seis horas. O carro do supervisor ao longe, levantando poeira da estradinha. -"Bom trabalho, Raimundo." O rapaz desceu do carro do supervisor. Sandoval ia embora. -"Bom dia, senhor supervisor. Vamos descansar." O homem analisou Sandoval. O carro saiu da área da usina. -"Muito movimento? Que achou? Vai encarar o trabalho?" Sandoval pigarreou. -"Mais é lógico. Gostei muito do serviço, lugar bonito." O supervisor estava aliviado. -"Isso é bom. Fico feliz." Sandoval fez uma careta. -"Tenho uma reclamação. " O supervisor suspirou e pensou. -"Pronto. Vai falar dos fantasmas e assombração, barulhos e medo. Vai desistir." Sandoval concluiu. -"Tem muita formiga na guarita. O senhor arruma um veneno. Eu acabo com elas." O carro já na cidade. -"O senhor nem acredita no que eu vi, o que eu encontrei atrás do galpão." O supervisor assustado. -"Um fantasma? A loira do banheiro?" Sandoval deu um tapinha no ombro do superior. -"Nada disso, uai. Um pé de manga rosa. Bonito demais da conta." O supervisor se remoendo de curiosidade. -"Senhor Sandoval, dizem que aparecem fantasmas lá na usina, a noite. O fantasma de uma loira, que era filha do marechal e morreu afogada. Também aparece um fantasma de um tratorista que quer fazer funcionar um velho trator. Dizem que um vampiro observa a guarita, muitos já o pressentiram." Sandoval se arrepiou. -"Credo em cruz. Fui criado na roça e essas coisas existem sim. Até apareceram algumas pessoas lá, na usina, mas não eram assim não. Era gente batuta demais da conta." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 16/01/2022
Reeditado em 16/01/2022
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