Oportunista
"Você não precisa se preocupar com o que vai dizer" eu disse. Foi o dinheiro mais fácil que eu consegui na vida.
Tudo começou alguns meses atrás.
Às vezes me sinto um ímã para pessoas, mesmo que dentro de mim eu não seja uma pessoa que goste delas. Com frequência estranhos desabafam comigo, ainda que eu odeie interações assim.
Quero dizer, tenho um sério problema com socialização. Sou uma máscara de atenção e prestatividade, mas não sinto vontade de estar perto de humanos. Eles sugam minha energia e eu apenas quero deitar e esquecer que eu existo depois disto. Ainda assim, eu estava lá ouvindo.
Era um homem com uns dez anos a mais do que eu. Ele se sentou próximo de mim onde fica uma mesa com quatro lugares em uma das áreas temáticas no Jardim Botânico da minha cidade. Era decorado com telhados em estilo nipônico, e próximo havia uma pequena ponte também no mesmo estilo de decoração. Não sou conhecedor de flores, mas, creio que o ambiente estava decorado de plantas provenientes de lá. Este homem estava arrasado, e era notável que ele estava no limite.
--Que horas são?
--Treze horas. Treze e três, pra ser mais preciso. Meu relógio pode não estar certo, pois eu sempre deixo ele alguns minutos adiantado.
--Obrigado. Você fala de um jeito bem formal. Deve ser bem estudado.
--Sim, estudo e leio bastante -- odeio quando escuto isto. É uma constante na minha vida as pessoas falarem que minha maneira de falar é formal demais, mesmo quando eu estou falando naturalmente. Eu não sei o porque, mas adotei esta forma de falar depois de algum tempo.
Alguns minutos de conversa e o homem se abriu comigo um pouco. Não tinha muito o que falar e tinha nada de importante para fazer, então ouvi o homem. Ele era um gerente de uma multinacional que se tornou viuvo recentemente.
Era uma família feliz, ele, um filho de sete anos e uma filha de três viviam felizes com a ideia de que sua esposa que tinha acabado de dar a luz a uma criança. Era a quarta noite que ela voltou no hospital com o bebê que as coisas começaram a se complicar.
Era de se esperar que fossem noites difíceis de se dormir, mas a esposa dele estava abalada desde antes do parto. Não sabia o porque mas ela estava desestabilizada emocionalmente desde o momento que descobriu estar grávida, embora a princípio ele não tivesse percebido. Quanto mais perto do dia de dar a luz, mais angustiada ela se encontrava. Queixava-se da criança chorando a noite e desabava em lágrimas sem motivo aparente.
Ele tinha ido fazer as compras e ficou fora algum tempo. Ele havia esquecido o celular em casa mas achou que não seria problemas. Ao chegar no prédio onde morava notou viaturas e uma ambulância. Estacionou o carro e depois do policial o deixar ciente da situação, e em pânico tentou subir para seu apartamento, mesmo com dois policiais o dizendo para não ir. Depois de muito esforço tentando impedir de ser contido, dois oficiais o seguraram. Ele falou que a esposa, o bebê e o filho mais velho morreu, sobrando apenas sua filha.
--Sinto muito.
--Tudo bem. Eu só preciso talvez de um terapeuta pra ontem! Alguém competente e que me ajude a passar desta fase. Eu pagaria o dobro. Não, o triplo do valor se fosse necessário para agendar uma consulta logo, já que o convênio não tem nenhum profissional a disposição no momento. Mas eu não consigo ter horário fixo pelo cargo que eu tenho então eu nunca conseguiria frequentar na mesma data, no mesmo horário.
--E se eu aceitasse sua oferta? Desde que seja o mesmo dia da semana, podemos negociar para flexibilizar o seu horário.
--Espera, você é psicólogo? Olha, se for assim preciso logo do seu contato.
--Excelente, vamos marcar então para a semana que vem.
Não, não sou terapeuta, nunca me formei na área, nunca fui capacitado para isto e sequer entendo da profissão. O homem estava em um ponto de desespero que nem sequer se preocupou de conferir se eu era ou não um profissional. Alguns dias depois iniciou-se a video chamada.
"Você não precisa se preocupar com o que vai dizer" eu disse. "Tudo ficará em sigilo".
Descobri que a situação dele era delicada e sofrida.
Sua esposa, ele descobriu depois, durante um momento de extremo descontrole abriu a torneira da pia e tentou afogar o bebê. Seu filho mais velho começou a chorar de medo quando viu a sua mãe, que fez ela em sua insanidade abrir a gaveta e acertar o garoto com uma punhalada. Demorou alguns instantes para que ela voltasse a si e perceber o que ocorreu.
Com a mesma faca ela tentou cortar o pulso para se matar, mas isto não estava funcionando. Foram identificados três cortes no corpo. Ela, depois disto, tentou pular do terceiro andar, mas, como ela estava física e mentalmente exausta, não abriu o vidro da janela, se jogando contra ele. Isto o partiu em pedaços, e o corpo fraco não conseguiu saltar o bastante para cair fora da janela, morrendo agonizando com a barriga sendo perfurada pelo vidro, pendurada no que sobrou da janela, depois de alguns minutos.
Após um tempo, ele contou que ela teve o mesmo tipo de reação nos dois outros partos, mas em níveis muito menores. A esposa dele já foi casada. Durante o tempo em que vivia com seu ex-esposo eles tentaram ter um filho. O ex-marido morreu num acidente e dias depois após os primeiros sinais fez o teste e descobriu que finalmente estava grávida. Porém, ela abortou. Uma única vez ela disse que embora fosse lindo levar adiante o fruto do amor dela e o ex-marido mesmo depois de sua morte a pressão seria demais.
Quando o conheci o homem estava disposto a cometer suicídio. A conversa, somado ao fato de ter encontrado um meio de começar sua terapia, salvou sua vida, e ele mantém o emprego dele, me contatando no horário que pode para ser consultado.
Com isto eu comecei a exercer uma profissão. Eu estava desempregado a um ano e meio, e estava desesperado por dinheiro. Acumulara uma dívida de dezessete mil reais por conta de precisar pegar dinheiro emprestado para viver neste tempo. Eu também tinha minha parcela de problemas para lidar. Mas eu conseguia sobreviver porque eu garantia que ele poderia falar e eu ouviria ativamente.
E ele estará me recomendando para outra pessoa.