A INFESTAÇÃO
Todos na cidade achavam Hélio muito esquisito. Ele trabalhava como jardineiro e era um homem calado; não olhava ninguém nos olhos. Hélio morava em uma área mais afastada do perímetro urbano do município. Dizem que cuidava da mãe doente; era filho único e tinha cinquenta e quatro anos de idade, apesar de aparentar ser mais velho. Ele só falava quando necessário, e olhe lá. Lembro-me dele resmungando alguma coisa quando eu passava por ele e o cumprimentava na rua. Sempre de cara fechada, o que o tornava ainda mais feio. Teve uma vez, que ao cumprimentá-lo, eu tive a impressão de ouvir ele me amaldiçoando com seus incompreensíveis resmungos.
Acho que por algum motivo que desconheço Hélio não gostava de mim. Senti isso num dia que eu estava passeando com o meu cachorro na rua e passei por Hélio na calçada. Ele parou do meu lado e me olhou com ódio no olhar... em seguida, me disse que todos os cães deviam morrer. Algo terrível de se dizer. Aquela tinha sido a primeira vez que eu o ouvi falando alguma coisa e olhando diretamente para mim. Depois disso, fiquei com pena dele; comecei a pensar que provavelmente ele tinha algum distúrbio psicológico ou algo assim. As pessoas costumavam comentar que ele era maluco, mas eu sempre achei que ele fosse apenas um homem humilde, sofrido.
Nos finais de semana e feriados, era comum que as pessoas se encontrassem na igreja, na praça ou no bar... coisas de cidade pequena. Mas Hélio, não. Frequentemente ele era visto no bosque, caminhando sozinho pelas trilhas. Até aí, tudo bem; mas o estranho era que Hélio sempre foi visto resmungando coisas, sozinho entre as árvores, como se estivesse cochichando com alguém. Alguns moradores do bairro comentavam que Hélio falava com fantasmas; diziam que ele via alma penada por causa do pai dele. O falecido pai do Hélio tinha sido coveiro no cemitério da cidade. Não cheguei a conhecê-lo, mas dizem que era um alcoólatra, ateu e muitas vezes, ele foi visto embriagado no cemitério chamando pelo Diabo. Sua esposa ia busca-lo e ele batia nela.
Para mim, essas histórias não passavam de lendas, mas observando o comportamento de Hélio, eu ficava pensando que talvez ele vivesse sobre influência de algum tipo de assombração. Hélio fazia questão de manter uma distância das pessoas. Não deixava que ninguém o tocasse; nem apertar as mãos ele permitia. Às vezes, ia até o cemitério e ficava lá por horas... sozinho, cochichando entre as sepulturas. Hélio tinha a pele extremamente enrugada, castigada pelo sol. As crianças do bairro morriam de medo dele, não chegavam perto.
Depois que sua mãe morreu, Hélio ficou ainda mais estranho. Raramente era visto no bairro. Já não trabalhava mais. Na semana em que ele completou sessenta anos, encontraram o seu corpo no bosque da cidade. Estava deitado de barriga para baixo, com o rosto no chão, em rigidez cadavérica. Como Hélio não tinha parente, por ordem da prefeitura, a funerária local ficou encarregada de cuidar do corpo e de todos os procedimentos funerários para o sepultamento. Um médico legista foi chamado.
Quando os funcionários da funerária e o médico legista foram recolher o corpo de Hélio no bosque, perceberam algo muito estranho ao tocar nas costas do cadáver. Ao levantar a camisa do morto, um susto. As costas de Hélio estavam tomadas por carrapatos; eram centenas de milhares, machos e fêmeas. O caso precisou ser estudado com mais atenção e logo o médico concluiu que aqueles aracnídeos já viviam ali enquanto Hélio ainda estava vivo. De acordo com o relatório médico, Hélio “criava” os carrapatos nas costas como se fossem bichos de estimação, e os mesmos, viviam ali se alimentando do seu sangue. Hélio era literalmente um hospedeiro.
Assim como algumas espécies do reino animal, que carregam seus filhotes nas costas (como os escorpiões, por exemplo), Hélio carregava uma infestação de carrapatos, que juntos, formavam uma espécie de carapaça nas suas costas. Tinham tantos carrapatos, que não era possível enxergar a pele das costas; os animais estavam alinhados em uma aglomeração que preenchia toda a área. Outro fato intrigante é que os aracnídeos não migravam para outras partes do corpo de Hélio. Nunca se viu nada igual aquilo. A ciência ficou perplexa com o caso que foi parar nas páginas das revistas científicas como “o caso do jardineiro e os carrapatos”.
Uma junta médica retirou todos os aracnídeos das costas de Hélio, que foi enterrado em seguida em um caixão lacrado após uma necropsia. Os carrapatos foram incinerados; apenas uma dezena deles foi enviada ao laboratório para estudos de zoonoses. Já o resultado do exame cadavérico foi também assustador, indicando que Hélio se alimentava dos carrapatos. O laudo médico apontou ainda que a causa da morte de Hélio teria sido por Febre Maculosa, uma doença infecciosa e possivelmente fatal, transmitida pela picada de carrapatos.
Hélio foi sepultado no jazigo da sua família, o mesmo onde seu pai e sua mãe tinham sido enterrados. Alguns dias depois do sepultamento de Hélio, mais um fato bizarro ocorreu. O tumulo foi tomado por uma intensa aglomeração de carrapatos, que rapidamente se espalhou por todo o cemitério e dias depois, já causava danos por todo o município. A cidade estava infestada de carrapatos. Uma força tarefa entrou em ação para combater a praga. Os aracnídeos estavam por toda parte e não pouparam animais ou pessoas. A Febre Maculosa fez muitas vítimas. As pessoas comentavam que aquela maldição pela qual a cidade estava passando era culpa de Hélio.
As pessoas exaltadas foram até o cemitério, jogaram gasolina no tumulo de Hélio e atearam fogo. Os malditos aracnídeos espalhados pelo cemitério caminhavam em direção ao fogo, entravam nas chamas e morriam queimados em seguida. A sepultura de Hélio queimou a noite toda. Por incrível que pareça, no dia seguinte, não se encontrava um carrapato sequer... todos tinham desaparecido. Talvez, um a um tenha se dirigido para o cemitério e mergulhado no fogo. Uma missa foi celebrada para pedir que a alma de Hélio descansasse em paz e que deixasse também a cidade em paz. As pessoas retomaram suas vidas e tudo voltou ao normal.