Sexta-feira Maior: sanfona, pandeiro e desespero

A crença naquilo que é sagrado, em seus ritos e mitos não é um privilégio do Cristianismo. Sabe-se que muito antes dele o mundo já sistematizava o sagrado, com todas as punições, privações e maldições decorrentes de sua profanação.

A crença nos ritos cristãos, em seus dias, festas e cerimonias sagradas sempre rechearam a crença popular com muitas estórias, por vezes assustadoras, que se materializavam em torno de fogueiras, fogões a lenha e sob a luz esquiva dos lampiões nutridos a querosene.

Já morei em casas iluminadas por lampiões, com fogão a lenha, no meio da mata, onde se apanhava água em sangas, ou em pequenos poços, que ficavam no final de trilhas, onde percorríamos com baldes, sempre topando em uma ou outra serpente que cruzava nosso caminho.

Recordo-me que vivi em uma casa situada a uns quinhentos metros da Rodovia 476, entre União da Vitória e Paula Freitas, a não ser pelo movimento da rodovia, que era intenso, todo o resto, que se podia ver, era mata para todos os lados, com um pequeno rio que ficava a uns quinhentos metros, em sentido oposto a rodovia, dentro da mata fechada, aos fundos da pequena casa de madeira onde residíamos, chamava-se Rio Macaco, ficava totalmente recoberto pelos galhos das arvores fixadas em suas margens. Local onde pescávamos muitos caranguejos e alguns lambaris.

Contava eu com menos de cinco anos na época, andava por uma trilha de uns duzentos metros até uma pequena nascente, onde apanhávamos água potável, não raras vezes me deparei com grandes jararacas que cruzavam a trilha, chegando lá enchia os baldes com água e retornava. Por vezes saía em direção ao pequeno rio caudaloso, que não teria água, nem força suficiente para matar um adulto, mas um pedaço de gente poderia se afogar e ser carregado por sua correnteza, mas lá seguia desacompanhado, com uma pequena varinha de bambu tentar capturar alguns caranguejos e com muita sorte algum pequeno peixe.

Quando me lembro das diversas vezes que me coloquei em risco, quando criança, penso na máxima dita por um amigo, naquelas vezes que fazíamos alguma burrice (depois de crescidos): “Deus protege os idiotas”. Acredito que algumas crianças ele também proteja, infelizmente não todas.

Mas nesse local em uma noite de inverno, não tínhamos televisão, somente um fogão a lenha, lampiões à base de querosene e às vezes um dominó para jogar. Estávamos sentados à beira do fogão a lenha, com a chapa cheia de pinhões, eu, meu pai, minha mãe, uma tia (irmã mais nova de minha mãe) e acredito que no berço próximo estava minha irmã, que ainda era um bebê.

Começaram a contar causos, como era noite, sempre se lembravam daqueles medonhos de assombração, esse era nosso cinema, nossa televisão, nossa internet, nossa Netflix. A catarse produzida com as histórias, bem como, a verossimilhança que se extraía dos causos, pois eram muito próximos a nossa realidade, faziam com que o filme se passasse dentro da cabeça, hoje acredito que cada um imaginava ao seu modo, ou seja, cada um construía sua imagem acústica daquilo que ouvia e se pudéssemos exteriorizar o que cada interlocutor imaginou com uma mesma história, teríamos varias versões de um mesmo fato.

Nessa noite, em específico, meu pai contava outro causo, dos vários que ouvi, que tratava justamente das penalidades que se pode sofrer quando se desafia regras sagradas e a estória se passava em uma Sexta-feira Santa, ou como ele gosta de chamar, Sexta- feira Maior. Começou a narrar o acontecido:

-Eu tinha pouco mais de 15 anos, naquela época já era considerado homem, apesar de não ter maioridade, mas já trabalhava desde cedo, para ajudar no sustento da família e tinha que honrar as calças que usava, além dos fios ralos do bigode que surgia.

- Tinha um namoro com uma menina, filha do nhô Aristides, ele era conhecido naquelas bandas, pois era gaiteiro (sanfonista), tocava todos os bailes que eram feitos e gostava de uma farra. Eu naquela idade me deslumbrava com a gaita, o violão, com a fama que esses instrumentos conferiam aos seus tocadores. Porém nunca pude aprender a tocar nada.

- Meu pai sempre me avisava para que tivesse cuidado quando passasse pela descida grande, que ficava perto da casa da família Cordeiro, dizia que lá tinha coisa ruim, contava para nós que uma vez viu um tatu bem num oco de imbuia, perto da curva no final da descida, tentou matar o tatu (pois na época se apreciava muito carne de caça). Pegou um pedaço de pau para matar o bicho, mas a cada paulada que dava no tatu, ele sumia, aparecendo em um lugar diferente, quando percebeu que era coisa de outro mundo se benzeu e saiu rápido em direção de casa.

-Porém eu era bem moço e não acreditava, aliás, como todo jovem, pensava saber tudo e não dava ouvidos, para nada e nem para ninguém. Esse é um dos males da juventude pensar que se tem poder, força e tempo ilimitado, quando na verdade é só um resultado do sangue agitado nas veias e do sebo que tá inteiro no rim, quando isso vai acabando vamos ficando mais calmos e sábios.

Barulhos lá fora! Todos paramos, escutamos atentamente, um friozinho apareceu lá no fundo da minha barriga, mas não era nada, já ouvimos miados de gatos, que pareciam estar no cio e faziam uma algazarra no telhado da casa. Deviam ser gatos jovens que estavam também com todo sebo nos rins. Continuou o seu Zé Pereira com sua história:

- Bem, mas como estava dizendo, eu tinha um namorico com a filha do nhô Aristides, me lembro de que ela era dois anos mais velha do que eu, se chamava Ilda. Em uma Sexta-feira Maior, como ninguém trabalhava, na verdade os mais antigos, não lavavam nem o rosto, não penteavam os cabelos, nada faziam nesse dia, resolvi que era um bom dia para ir até a Vila e visitar a moça. Antes de sair de casa fui advertido por meu pai, que me disse mais uma vez: “Não é dia de sair! Uma hora você vai ganhar o teu, fica passando a noite pela descida grande.” Mas sem dar muita bola, porém com todo o respeito que eu devia a meu pai, fiz de conta que ouvi e saí em direção a Vila.

-Chegando lá encontrei o pai da moça, que estava em uma pequena venda, tomamos umas pingas, jogamos dominó, conversamos, contamos piadas, juntamente com os outros fregueses que ali estavam. Lá por umas 18 horas ele me convidou para jantar em sua casa e fazermos uma cantoria, como eu tinha interesse na filha, nem pensei, aceitei. Dali fomos direto para a casa do Nhô Aristides.

-Jantamos, cantamos, tomamos uns goles de uma cachaça de alambique envelhecida em barris de madeira. Eu tocava um pandeiro, o pai da moça na sanfona, ela, as irmãs e a mãe participando da cantoria. Depois que paramos, ficamos jogando conversa fora, contando piada, tomando pinga, comendo torresmo e linguiça frita, quando dei por mim já passavam da meia noite e por mais que eu quisesse, lá não poderia dormir, então me despedi e segui caminho rumo a Lagoa Suja. Dali onde estava eram cerca de uns 10 quilômetros até a casa dos meus pais.

- Saí alto do chão! Um pouco de faceiro por ter ficado perto da Ilda, outro tanto, por causa da pinga. Caminhava bem tranquilo e alegre, a noite estava enluarada, passei pela Igreja e logo depois pelo Cemitério, que ficavam logo após a saída da pequena Vila, como é costume, quando se passa por lugares sagrados me benzi, fazendo o sinal da cruz e rezando um Crendiospai.

- Andava meio que flutuando, com as pernas soltas, com o coração acelerado, lembrando-se da noite boa que havia passado, pensando como faria para conversar com a moça outra vez e se pudesse, um pouco mais distante dos pais dela. O tempo passou tão rápido, que quando dei por mim já estava na descida grande, próximo à casa dos Cordeiro. Casa dos pais do seu padrinho Pedro.

Disse meu pai olhando para mim.

-A estrada nesse ponto começava a ser cercada por um barranco em ambos os lados, fazendo com que se assemelhasse a um grande corredor, ao final da descida existia uma pequena curva e logo em seguida uma reta, nesse local era impossível escalar os barrancos, devido à elevada altura que eles ganhavam.

-Quando acabava de descer, no que passei pela pequena curva e avistei a reta que vinha logo depois, também avistei dois vultos que caminhavam juntos, um ao lado do outro no meio da estrada, pensei: Para estarem vindo para a Vila aquela hora da noite só poderia ser caso de morte ou doença.

Minha irmã acordou e começou a chorar, minha mãe a pegou do berço, começou a embalá-la e logo que se acalmou, sentou-se com ela no colo e meu pai continuou com a estória:

-Vi aqueles dois vultos negros, que vinham caminhando em minha direção lado a lado, bem no meio da estrada, conforme se aproximaram pude ver que se tratavam de duas figuras masculinas, pelo porte e por que trajavam uma espécie de terno negro, além de um chapéu na mesma cor que se destacava sobre suas cabeças..

-Até esse ponto tudo estava bem, mas quando se aproximaram de mim, se dividiram, cada um foi para um lado da estrada, para me obrigar a passar pelo meio deles. Nessa hora fui tomado de um terror, meus cabelos se arrepiaram, tentei subir o barranco, mas não consegui, olhava para eles, que vinham sem parar em minha direção, dava pra ver que trajavam roupas prestas e chapéus pretos, mas não conseguia ver os rostos. Perdi a capacidade de pensamento, fui tomado pelo medo, algo que não era natural, mas não conseguia controlar.

-Tentei fechar os olhos, mas não consegui, estavam abertos como se estivem pregados. Comecei a me sentir paralisado, as pernas estavam duras, não podia mexê-las, os braços da mesma forma e os olhos que não fechavam, até tive a impressão que parei de respirar, fui tomado por um frio, como se estivesse no forte do inverno, via o vapor de minha respiração passando pela minha frente.

-Como não podia fazer o Sinal da Cruz, rezava o pai nosso e o Crendiospai dentro da minha cabeça, os dois homens se aproximaram, vindo em minha direção, eu estava ali grudado no barranco, sem poder reagir, sem poder correr, não conseguia prosseguir, nem mesmo retornar. Quando chegaram perto de mim, a mais ou menos um palmo do meu rosto, consegui ver que não possuíam rostos, só uma fumaça preta em lugar da cabeça e das mãos. Pararam bem junto a mim, sem dizer nada, um deles retirou das vestes o pandeiro, o mesmo que eu toquei a noite inteira e chacoalhou ele bem na minha cara.

-Depois disso, levando o pandeiro consigo, seguiram em direção a Vila e sumiram na curva da descida grande que estava logo atrás de mim. Comecei a sentir minhas pernas, meus braços, a piscar e a sentir a respiração. Assim que pude saí andando, pois não podia correr, me sentia como se estivesse há dias sem comer, fraco e atordoado, a cada passo dado olhava para trás, dei graças a Deus a hora que avistei a porta de entrada da casa dos meus pais. Abri com certa dificuldade e me atirei cozinha à dentro.

- No outro dia contei o fato acontecido e ouvi aquilo que já esperava do meu velho pai: “Não te avisei piá de merda!” Nunca soube o que aconteceu na realidade, nem busquei compreender, existem coisas que são para deixar quietas. Com o passar dos tempos o acontecido ficou cada dia mais parecido com um pesadelo e menos com a realidade.

Encerramos a conversa, limpamos as cascas de pinhão que haviam sobrado sobre a chapa do fogão. Sentamos todos em torno da mesa para comer um pedaço de bolo, com cobertura de pudim de baunilha e tomar um café, para logo depois iniciarmos umas partidas de dominó, que se estenderiam até a hora de nos recolhermos à cama.