ELE NÃO É MAIS UM HOMEM

“She should not lock the open door

(Run away, run away, run away)

Full moon is on the sky and he’s not a man anymore

Sees the change in him but can’t

(Run away, run away, run away)”

Composição: Tony Kakko

Depois de uma longa conversa consigo mesmo, ele chegou à conclusão que talvez fosse a mais difícil em sua vida, se é que se pode dizer que ele realmente estava convicto de tal decisão.

Ele permanecia sozinho em um canto, olhando pela janela e percebendo que a aflição em sua alma aumentava na mesma proporção em que o sol começava a descer pela linha do horizonte ao fundo da baía.

Mas desta vez seria diferente. Ele apertava o crucifixo junto ao peito e tentava a todo o custo convencer a si mesmo. Da mesma forma que ele sabia que o misticismo prateado poderia por um fim às suas noites de sofrimento, ele também conhecia os caminhos, ainda que difíceis, de encerrar de vez o seu sofrimento sem fazer, no entanto, com que perdesse a vida no processo. Por muitas vezes ele quis por uma bala no cérebro e acabar com tudo, mas, ao mesmo tempo, ele achava injusto ter de abrir mão da própria existência tendo o melhor dela pela frente por conta dessa maldição dos infernos. Há cem ciclos ou mais ele uivava para aquela que do alto sorria de sua danação.

Para quebrar a maldição, bastava que ele conseguisse encontrar alguém que o amasse em sua verdadeira forma, aquela que ele revela sob o manto prateado do plenilúnio. E, além disso, seria preciso que ele dominasse o seu demônio interior e conseguisse reconhecer o sentimento diante do apetite insano. A violência era algo que invariavelmente acontecia a todos que cruzavam o seu caminho.

Que aquela mulher era a dona do seu coração não havia dúvidas, e que esse sentimento era recíproco muito menos. Ele estava decidido a revelar-lhe o seu terrível segredo essa noite. Faria com que ela testemunhasse a chegada da fera sanguinária que lhe roubava a sanidade e espalhava morte por onde passava. Na saúde e na doença. O amor traria luz às trevas. Sim, a lua cheia logo estará aqui novamente, mas agora teria um novo significado.

No entanto, ele começa a duvidar de suas certezas, ao passo que sente a lua se erguer mais uma vez no céu. É a insanidade. Será que tudo estaria errado?

Não! Ele não pode pagar para ver, precisa fugir dali antes que a amada apareça. A mudança se aproxima e ele precisa de um lugar seguro para ficar. Com o desespero a açoitar-lhe o espírito, ele cruza a baía, nadando para preservar a vida, o amor e a consciência. Era irônico como uma noite cinza e calma poderia ao tempo significar tanta dor e promessa de sangue.

O antigo celeiro, o mesmo lugar no qual ele costumava se esconder quando criança. Um refúgio seguro para um condenado. A névoa da noite remove as lembranças de humanidade, ele não pode mais lutar. Com um grito, tudo estará terminado e os resquícios do seu “eu” se dissiparão pelos montes de milho e feno.

Antes de perder por completo a lucidez, ele ouve o barulho na porta. Não! Ela não deveria estar aqui, ela não deveria trancar a porta aberta.

A amada, que sabia que havia algo incomodando aquele a quem escolhera para completar sua vida, o viu entrar nas águas plácidas da baía e decidira segui-lo, apesar de já conhecer o destino para onde rumava.

O que ela desconhecia era a verdadeira face daquele homem, apesar de que ele não era mais um homem. Ela vê a mudança, assiste a transformação, mas não consegue fugir. Atônita, ela contempla no que seu amado se tornava.

Mas o amor não havia terminado. No peito da mulher permanecia acesa a chama que alimentava o mais nobre dos sentimentos, mesmo diante de um demônio.

E no interior da fera, no ínfimo distante e quase inalcançável da criatura, a mesma força se mostrava presente. Livre das amarras que o prendiam, aquele que já fora um homem corria ao encontro de sua salvadora.

Ele a devorou. Deglutiu sua carne. Bebeu o seu sangue. Triturou ou seus ossos. Mesmo a amando intensamente, a fera que dominava as ações do humano não se furtou em destroçar e engolir, ainda palpitante, o órgão símbolo do amor.

Com a brisa da manhã, os indícios da sanidade retornavam para o seu corpo. Ele sentia que nunca mais se tornaria um demônio novamente, pois as lendas deveriam estar certas. Ela mantivera firme os seus sentimentos diante da morte em forma de dentes e garras, e ele, mesmo cego por uma força indomável, sabia que a fagulha seria eterna.

A danação mudara. Viver livre da maldição, mas preso para sempre na dor inconsolável do remorso.

*Conto inspirado na canção Full Moon da banda finlandesa Sonata Arctica

Sávio Feudazol
Enviado por Sávio Feudazol em 19/12/2020
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