2020, O ANO QUE NÃO VIVEMOS (A REVOLTA DE GAIA)!
Marcel abriu os olhos. Sentiu um calor infernal. Estava num deserto. -"Mano. Aqui é o Itaim, estou em São Paulo. Não tô louco!" Colocou a mão no ombro do homem a sua frente. Ele se virou e deu-lhe um soco. O sangue jorrou. Marcel caiu sentado na areia fina. Ele se levantou, limpando a boca. O lábio cortado. -"Vai morrer, tiozinho. Fiz box tailandês na academia do Luan Chileno, velho." Uma criatura verde se colocou entre os briguentos. Marcel sentiu um toque estranho na testa. Seu corpo ficou imóvel. A criatura verde tinha um olho só. Era enorme. Parecia uma árvore andante. -"Apenas ande, palerma!" Ele olhou para os lados. Quem estava falando com ele? Aquela criatura, de quatro metros de altura, não tinha boca. O velho estava muito a frente dele. Aquela voz estava dentro de sua cabeça. A nuca doeu. O corpo dele doía. Uma fila de quinhentas pessoas. Andavam igual zumbis. Esfarrapados, magrelos e sujos. Alguns deles bem cadavéricos. -"Maluco. Isso é gravação de The Walking Dead ou morri de verdade!?!" Uma placa de trânsito. Avenida Paulista. -"Se estamos na Paulista, filhote. Cadê os carros, os prédios e os escritórios???" Não havia asfalto, calçadas, nada. Os pés descalços na areia. Estava barbudo. Quanto tempo se passara?! Por quanto tempo andara?!? Uma trombeta soou. Ele tapou os ouvidos. As pessoas se ajoelharam. Marcel ficou de pé. -"É o cavalo branco do apocalipse chegando. Estou morto, moleque. O pastor Urias falou disso." Marcel quis andar mas não conseguiu. Algo o impedia. Ele não controlava seu corpo. -"Hora da água, palermas. Será a última vez que tomarão esse líquido precioso." Ele ergueu o dedo indicador. -"Palerma é a vovozinha! Tive um professor de história que me chamava de palerma. Sabem o que aconteceu com ele? Sabem? Ganhou na mega sena e ficou milionário!" Dezenas de naves espaciais passaram sobre ele. Ele abaixou o dedo. Das naves caíram centenas de garrafas de água. -"Invasão alienígena, apocalipse zumbi... ferrou." Marcel pegou duas delas. A boca seca. Tinha muita sede. Ele tomou uma garrafinha num só gole. -"Melhor guardar essa garrafa pra depois!" Pensou ele. -"Bebam palermas. Essas garrafas são biodegradáveis mas temos bilhões de lixo plástico de vocês, humanos, no estoque. Esse lixo de vocês que poluiu mares e rios. Inadmissível que milhões de pessoas não têm acesso a água potável, atualmente." Marcel nada entendia. Ele começou a andar, instintivamente. Algumas criaturas verdes seguiam a marcha. -"Ainda estamos em 2020! Não estou louco. Faltam dez dias para o natal. O campeonato brasileiro ainda não terminou e o tricolor é líder, pra alegria do Valter!" Seis criaturas verdes o cercaram. Um deles colocou um tridente em sua cabeça. -"Comando. Tem um humano semi consciente aqui." Foi a última coisa que ouviu, antes de ser amarrado. Acordou, horas depois, numa maca. Dez criaturas o cercavam. Eles conversavam entre si. Era um dialeto estranho. Marcel escutava tudo, perfeitamente. -"Olá, humano desprezível. Acordou, enfim. Você será levado a Gaia!" Era telepatia, intuiu. Gaia? Marcel tentou se lembrar desse nome. Aula de biologia, talvez? Uma pergunta do Luciano Huck, no Quem Quer Ser Um Milionário?? Ele não sabia quem era Gaia. As criaturas o colocaram numa nave. Uma venda nos olhos. Em segundos, estavam numa grande caverna. A nave entrou. As luzes acesas. Um abismo colossal. Marcel teve a venda retirada. Dava pra ver o núcleo do planeta, a frente. Uma névoa verde. A porta da nave se abriu. As criaturas se ajoelharam. Marcel ficou de pé. Uma das criaturas socou seus joelhos. Marcel viu estrelas e caiu de joelhos. -"Não olhe para Gaia, palerma! Apenas ouça!" Marcel ouviu passos. Um perfume feminino, amadeirado. Marcel viu a barra de um vestido translúcido, cravejado de diamantes, próximo dele. -"A Terra foi devastada por um grande meteoro, Marcel. A humanidade está praticamente dizimada. Alguns gatos pingados aqui e alí." Marcel não tinha dúvida que era uma voz feminina. A voz dela embargou ao falar do fim da humanidade. -"Obrigado por me chamar pelo nome, Gaia." Uma das criaturas o socou. -"Não diga o bom nome da deusa. Vocês, humanos, nunca ligaram pra ela! Gaia ou Geia, na mitologia grega, é a mãe-Terra. É o elemento primordial, geradora de potencialidade infinita. No princípio, era o Caos, dele nasceu Gaia. Nasceu Tártaro, o abismo. Eros, o amor. Erebo, as trevas. Nix, a noite. Gaia gerou Urano, o céu. Gerou Ponto, o mar. Gerou Oreas, as montanhas. Nereu, deus marinho. Gerou Forcis, Ceto, Euribia e Talmas. Gerou os Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperio, Japeto, Teia, Reia, Temis, Mnemosine, Febe, Tetis e Cronos. Gerou os ciclopes e os necatonquiros. Cronos atacou Urano. A terra se separou do céu. Cronos se casou com Reia e assumiu o trono do universo. Urano disse que dos filhos de Cronos o destruiria. Cronos passou a comer os filhos. Gaia, revoltada, se uniu com Reia e escondeu Seis em Creta. A cabra Aix, da ninfa Amalteia, amamentou a criança. Reia deu uma pedra a Cronos. Ele a engoliu, achando que era Zeus. Cronos foi destronado por Zeus, agora soberano do universo." Marcel se calou. -" Voltando ao agora. Estou revoltada com os incêndios florestais na Amazônia, as tempestades no Atlântico, os ciclones na África, seca e fome no mundo, tsunamis na Ásia, as geleiras derretendo, as ondas de calor a noite, inundações, fogo na Califórnia e Austrália, o mar subindo desde 1990, a poluição em níveis altos, espécies extintas, humanos se matando... tudo isso mexeu muito comigo. Minha instabilidade e relógio natural foi colocado em risco. Estou revoltada e decidi acabar com vocês de vez!" Marcel engoliu em seco. Ela tinha razão. Ele se lembrou de João Grilo, no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Estava numa espécie de tribunal. -" Misericórdia, Gaia. Não destrua a humanidade. Temos cinco bilhões de anos a frente, antes do sol se transformar numa gigante vermelha. A Terra sairá de sua órbita, selando seu fim. Assim dizem os cientistas. Andrômeda poderá se chocar com a via Láctea, causando um rebuliço cósmico sem igual. Seria o fim da humanidade mas só daqui há bilhões de anos. O fim é um evento futuro. Eu acho." Marcel sentiu a raiva na voz de Gaia. -"Fora com os humanos! Desde a modernidade, vocês estão causando o fim do planeta. Ficam procurando meios de ir a Marte, ao invés de proteger os recursos naturais que eu forneço. Essa pandemia do Covid-19 só veio reordenar as coisas. Seu impacto foi tremendo em toda a sociedade mas, mesmo assim, vocês não mudaram. Não há mais volta, matarei os últimos humanos da terra. Vou me reestabelecer, sem os humanos." Marcel começou a chorar. -"Aqueles zumbis eram os últimos brasucas, então?!" Uma das criaturas pegou uma arma e apontou para a cabeça de Marcel. -"Adeus, humano. Será um tiro apenas. Temos bilhões dessas armas no estoque. Que triste. O homem sempre preferiu fabricar armas ao invés de acabar com a fome no mundo." Marcel juntou as mãos. Tentou se lembrar de alguma oração, em vão. Suava frio. -"Não me mate, alienígena. Esse 2020 tem sido horrível. Começou uma mercadoria pois perdi meu pai no natal passado. Perdão por estocar papel higiênico e xingar aquele velho sem máscara, em março. Perdão por não recolher o cocô do meu poodle, na calçada do condomínio. Fui despedido no meio da pandemia. Ataquei o governo, os chineses e até a santa da minha mulher que me obrigava a entrar descalço em casa. Perdi amigos com Corona. Isolamento, breakdowm, desemprego, o preço do óleo e da carne nas alturas, fábricas fechando, a guerra da vacina, as máscaras, as fake news, um ano que não vivemos. Por favor, me deixa ver a estrela de Belém. Será um evento único, após oitocentos anos. Perdão, Gaia. Perdão, mãe natureza. Perdão, Gaia!" Uma dor forte no ouvido. Marcel deu um pulo na cama. A esposa deu outro tapa nele. -"Não me faça de besta, Marcel. Quem é essa Gaia que você chamava no sonho? Quem é essa sirigaita???" FIM