UBI  DE  DAEMONUM  VENIRE?
 
 
  
      No ano 875 de Nosso Senhor Jesus Cristo, o inverno rigoroso e úmido chegava ao fim. Os camponeses das pequenas aldeias próximas do principal castelo de Wessex prestavam tributos ao meu rei, renovando a esperança de boas colheitas advindas do clima ameno que estava por vir.

     Em uma certa manhã ensolarada daqueles dias, fui chamado à presença de Alfredo, o Grande. Ao entrar no salão nobre do trono real, avistei o detestável padre Egbert Weldmore, da Nortúmbria, acompanhado de um homem desconhecido, de aparência ordinária, provavelmente um camponês simplório que dava a impressão de amedrontar-se até com a própria sombra.

    Antes do conselheiro-mor me anunciar, ainda pude ouvir um pedaço do relato daquele homem atormentado.


     — Os espíritos das trevas estão soltos no território do ealdorman Elfric de Eynsham. Tememos todas as noites, trancados em nossas casas, aquelas horrendas criaturas do inferno. Padre, tudo que se diz sobre o inferno é verdade! Os demônios vivem nas profundezas da terra. À noite, eles sobem à superfície para nos causar sofrimento! Nossos rebanhos estão minguando, as plantações estão morrendo a olhos vistos. Os animais das florestas, aves e até os peixes estão diminuindo. Eles querem nos matar de fome!

     — Meu Senhor, Ethebaldo Hamtunn, chefe da Guarda Real, está aqui. – Anunciou o velho conselheiro, apontando-me discretamente com as duas mãos trêmulas.

      O monarca me chamou com um discreto gesto de mão para me aproximar da audiência em curso.

    — Este homem – disse-me o rei apontando o queixo para o Assustado – é o mensageiro do ealdorman Elfric de Eynsham. Ele fala de demônios surgidos das profundezas do solo destruindo as poucas provisões obtidas durante o rigoroso inverno deste ano.

     — Demônios? Eles existem? – Comentei incrédulo, olhando de soslaio para o padre Egbert. – Ou o mensageiro está se referindo a algum tipo de animal selvagem...hum, como lobos, por exemplo.

      — Não, não, não – gemeu o mensageiro de olhos esbugalhados. – São demônios! São criaturas do inferno, todos em Eynsham sabem disso, eles vêm das entranhas da terra!

    — Se são demônios de verdade não sei como posso ajudar. Expulsar estas criaturas é tarefa para padres, não um guerreiro.

     O rei olhou para o clérigo Egbert. O velho barrigudo assentiu aborrecido. Ele detestava ter de concordar com a opinião de um homem que fazia pouco caso da religião. Esbocei um sorriso de superioridade.

     — Ethebaldo, como deve ser de seu conhecimento, Elfric de Eynsham, mui generosamente enviou seus guerreiros para se juntarem ao nosso exército em campanha contra os bárbaros pagãos vindos do norte. Agora, infelizmente, meu amigo leal está à mercê destas supostas bestas demoníacas, sem poder contar com homens armados para defender o seu território. Ethebaldo Hamtunn, quero que escolhas cincos homens de minha guarda pessoal e acompanhes o padre Egbert até o condado de Eynsham para expulsar os excomungados daquela região.

     Antes de me ajoelhar como forma de acolhimento da missão, o clérigo se adiantou a um passo.

     — Senhor, meu rei, temo a fama de indisciplinado de Ethebaldo. O menosprezo deste herege em relação aos ritos religiosos da nossa Santa Igreja pode comprometer a perigosa tarefa que vossa majestade me destina.

     Alfredo voltou sua atenção sobre mim. Rapidamente me ajoelhei, inclinando mais uma vez a cabeça levemente em direção ao chão.

     Antes de encarar, submisso, o grande monarca, lancei uma expressão carrancuda contrariada ao religioso, pouco não faltando para atirar-me naquele pescoço rotundo, a fim de dar-lhe uns bons safanões. Queria fazê-lo engolir aquelas ofensas, mas contive-me, preferindo manifestar um olhar plácido na direção do rei.

    O soberano de Wessex não precisou dizer-me nada! Magnânimo como era, Alfredo, o grande, apenas assentiu  com um aceno leve de cabeça, como se quisesse me poupar da humilhação na frente do seboso, dando a entender com o gesto a seguinte mensagem implícita: não me desapontes, faças exatamente o que o padre te ordenar!

 
 
 

      A jornada ao condado de Elfric de Eynsham durou quatro longos dias e transcorreu sem incidentes. No entanto, quando finalmente chegamos à aldeia principal, montados em cavalos exaustos, a presença do Padre Egbert, inesperadamente causou a maior confusão no vilarejo. Parecia que o próprio Jesus Cristo tinha descido à terra novamente porque os camponeses prostravam-se ao chão de joelhos por onde ele passava, rezando alto, beijando-lhe as botas encardidas, rogando-lhe pedidos desesperados de libertação das crias de Satanás advindas das entranhas do solo.

     Aquela comoção me causou um desconforto incomum. Senti minha pele se arrepiar dos pés à cabeça, o estômago se revirar de modo estranho, o suor brotar abundante apesar do dia frio. O medo dos aldeões parecia se espalhar com o vento, nos tomar de assalto. Então, pela primeira vez, admirei o padre Egbert porque o religioso parecia uma luz de serenidade em meio ao caos de horror daquela pobre gente desesperada. Meus homens tiveram de usar da força para intimidar alguns mais afoitos, pois pretendiam arrancar o clérigo de cima de sua montaria.
      
      — Rorik, onde mora o ealdorman Elfric? – Gritei para me fazer ouvir por sobre as lamentações dos camponeses.

      O mensageiro apenas apontou o dedo indicador à esquerda. Meu olhar acompanhou o movimento. Percebi uma formidável construção, num aclive elevado de onde terminava a estradinha poeirenta principal da aldeia e começava a trilha ligeiramente íngreme, da qual levava ao reduto do senhor daquela região. Era um castelo incomum, sem muros, mais parecendo uma gigantesca igreja com portas e janelas em demasia. A posição elevada da formidável fortaleza permitia ao seu dono acompanhar a movimentação dos camponeses por distâncias consideráveis. Sinalizei a todos para irmos logo visitar o senhor daquele lugar.

 
 

      — Padre Egbert de Wedmore sede bem-vindo às minhas terras. Lamento as atuais circunstâncias não serem as mais adequadas a fim de prestar-lhes uma boa e tranquila acolhida. – Disse Elfric de Eynsham, montado em seu cavalo, abordando-nos a meio caminho da trilha íngreme da sua insólita morada.      

      A despeito de conceder-nos a honra, muito rara, de um ealdorman receber seus convidados pessoalmente, dispensando os protocolos próprios da nobreza, percebi a inquietação do nobre por compartilhar conosco informações sobre as supostas forças malignas invasora dos seus domínios.

      Depois das rápidas apresentações em meio a alguns comentários frívolos sobre o clima da região, emparelhamos nossos cavalos aos da comitiva de serviçais de Elfric. Continuamos a subida sinuosa da trilha. Enquanto subíamos, a conversa não tardou a encaminhar-se aos maléficos invasores. E, antes de lançar as minhas dúvidas sobre a veracidade de tais criaturas infernais, posto que para mim não passavam de um refugo ordinário de ladrões de estrada disfarçados com peles de animais, o nobre de Eynsham faz uma declaração surpreendente:

      — Padre, o senhor poderá avaliar a força destes demônios assim que chegarmos ao meu castelo. Ontem à noite, quatro valentes camponeses conseguiram capturar um deles no velho truque da arapuca.

      A notícia fez o padre, pela primeira vez em toda a viagem, trocar um rápido olhar comigo, mas não percebi medo na fisionomia do clérigo. Não obstante, ele deve ter visto em meu semblante as minhas preocupações aumentarem consideravelmente.

 



     Hoje, passados mais de trinta anos, e de já ter visto de tudo nesta vida, ainda me causa arrepios quando me lembro do exato momento em que deitei os olhos por sobre aquela criatura de satanás.

     A besta era enorme, de uma magreza acentuada. Os ossos do corpo, revestidos de uma pele da cor do azeviche, podiam ser contados um a um em toda a extensão de suas formas constrangedoramente humanas. Da cabeça lisa, do crânio à vista, duas enormes orelhas pontudas agitavam-se como as de um coelho assustado, olhos completamente negros, profundos, perturbadores, moviam-se para todos os lados numa rapidez sobre humana. Do nariz nada se via, da boca de dentes perigosamente finos, serrilhados, projetava-se uma língua fina, enorme, de ponta bifurcada, semelhante às de uma serpente venenosa.

      Era, enfim, uma criatura de aparência asquerosa!

     Temendo a fúria da ominosa besta por livrar-se das correntes que lhe prendiam os tornozelos, os pulsos e o pescoço às paredes do calabouço, desembainhei a minha espada decidido a lhe decepar a cabeça. O monstro forcejava a fuga sacudindo o corpo esquelético, emitia grunhidos jamais ouvidos de homem ou animal conhecido. Fiquei apreensivo do maldito conseguir se libertar das correntes.

      O senhor Elfric, parado no umbral do catre fétido, disse não ter presenciado desde a captura na noite anterior aquele comportamento agitado do excomungado. Tal comportamento só poderia ser explicado pela presença do padre Egbert. Meus instintos de guerreiro gritavam-me para matar o monstro infernal enquanto ainda estivesse acorrentado.

      Quando levantei a espada acima da cabeça, inesperadamente o maligno recuou à parede, se encolheu aquietando-se, porém eu sabia: as crias de satanás eram ardilosas no seu pensar. Por isso, não me deixei levar pela misericórdia. O que eu não esperava era ouvir a voz determinada do padre Egbert atrás de mim:

      — Ethebaldo, eu te ordeno. Não o mate!

      — O quê? O senhor enlouqueceu? Além deste aí há muitos outros lá fora destruindo animais, plantações...

      — Quero levá-lo à presença de Alfredo. Cortaremos a cabeça do maldito em praça pública.

      — Não entendi, padre! O que o impede de executá-lo em praça pública aqui mesmo neste condado?

    — Muito simples. Os aldeões deste lugar já reconhecem a existência das crias de satanás. Por isso, vieram a mim desesperados para livrá-los do mal. Se existe o diabo, não há porque duvidar da existência do Senhor, Meu Deus. Quero levar o temor para com o Altíssimo, apresentando esta prova maléfica aos homens de pouca fé do exército de meu Rei. Homens como você, Ethebaldo, são como o santo apóstolo Tomé... precisam ver, para crer.

      — Devemos matá-lo, isto sim! – Resmunguei contrariado.  

      — Não! Já decidi. Vamos levá-lo à presença do rei.

      O ambicioso plano do Padre Egbert, Graças a Deus, caiu por terra algumas horas depois!


 
 
 

     No outro dia, à tarde, logo após a refeição principal, nos dedicamos a cuidar da espinhosa tarefa de preparar o transporte da besta para Wessex.

     Depois de muito lutar com as correntes, espetar por diversas vezes aquela cria de satanás com a minha espada, os meus amigos de armas, os serviçais do ealdorman, mais o teimoso clérigo de crucifixo em punho, conseguimos arrastar o monstro para o estábulo na parte superior do calabouço. Acorrentamos a besta em cima de uma carroça puxada por 4 cavalos. Ficamos muito satisfeitos com o trabalho realizado.

     No entanto, mal saímos à claridade dos primeiros raios de sol daquela tarde, escoltando a carroça, o monstro começou a emitir bramidos assustadores que ecoaram por todo o vale.

    Vimos aparvalhados a besta entregue ao mais puro desespero, debatendo-se violentamente por livrar-se das correntes, tentando voltar para o estábulo. Vimos a pele escura desprender uma fumaça fétida. O demônio, exposto ao sol, estava queimando a olhos vistos como se estivesse lentamente derretendo, tal qual a cera que escorre do lume forte da uma vela comum. Os seus olhos, de repente, transformaram-se em duas pequenas bolas de fogo, enquanto a bocarra, escancarada de horror, projetava a língua bífida trêmula no estertor da morte. A pele antes escura tornara-se cinza, transformada numa pasta escorrida por sobre os ossos poderosos de sua magra estrutura.

     — Santo Deus! O que aconteceu? – Perguntei tão assustado quanto os outros membros da escolta, afastando-me da carroça.

      — É um demônio das trevas! E demônios das trevas parecem não suportar a luz do sol. Por isso, eles atacam apenas à noite. – Concluiu o padre Egbert decepcionado, é bem verdade, mas confiante na sua explicação de última hora.


 

   
      O que vou relatar, agora, deverá mudar a concepção conhecida durantes séculos sobre o inferno. Os padres costumam dizer que os demônios estão presos embaixo da terra, mas isto não é bem verdade!

      Depois de passar à tarde inteira vasculhando todas as cavernas nos arredores da aldeia, incluindo buracos suspeitos na campina à procura do covil dos malditos, voltamos ao castelo para descansar. Achamos sensato não empreender as investigações sob a escuridão da noite. Por isso, quando a madrugada já ia alta e o sono não vinha, resolvi abandonar o conforto do meu leito, dispensando a sentinela no pátio frontal do castelo. Tomei o seu lugar na vigília.

      Era uma noite agradável, de lua cheia. Uma leve brisa vinda do mar afagava com carinho as poucas folhas das árvores mirradas que recuperavam o viço depois de uma estação invernal intensa. Fiquei lá, sozinho, sentado num banquinho de madeira carcomido pelos cupins por um bom tempo, meditando, escutando o barulho das ondas do mar contra os rochedos ao longe.

      Todavia a quietude durou pouco! Eles, os maléficos, ousadamente tiveram a petulância de aparecer embaixo de nossas barbas!

      As criaturas ominosas emergiram de um velho poço abandonado a setenta passos de onde eu estava. A luminosidade da lua era forte, permitindo-me acompanhar estupefato o que julguei ser uma desesperada missão de resgate dos restos mortais do demônio morto horas antes. O padre Egbert havia ordenado que envolvêssemos o corpo “derretido” numa mortalha branca e o deixássemos a qualquer canto para levarmos à fogueira no centro da aldeia no dia seguinte.

     Os diabretes, eram três, agiam numa velocidade espantosa! Jamais vi tal agilidade em outro qualquer ser vivo sobre a face da terra. Rapidamente, eles se deslocaram, correndo, dando saltos incríveis como se fossem extremamente leves, até o corpo envolvido na mortalha. Um dos excomungados, o maior de todos, provavelmente o líder do grupo, puxou o corpo para si e, ajudado pelos outros dois companheiros menores, jogou-o sobre suas costas para retornar ao poço.

      Então, busquei coragem, não sei de onde, para dominar o temor extremo de queimar eternamente na fogueira do inferno. Levantei-me do banquinho num salto, desembainhei a espada, berrei o mais alto das minhas forças e comecei a correr de encontro aos demônios: “Em nome do Senhor, Meu Deus, ordeno que parem”!

      Naquele momento, lembro-me como se fosse hoje, fui arrebatado por uma visão divina! Uma revelação do Altíssimo para entender como o diabólico satanás usa de artimanhas para ludibriar nossos olhos e se esconder em lugares dos quais sequer desconfiamos!

    Quando os demônios já haviam chegado ao poço, eles foram atraídos pela minha presença.  O líder deles olhou para mim de modo hostil, vingativo, quase me fazendo parar de medo, contudo sabia ter Jesus Cristo sustentando minha espada. Não me intimidei! O monstro das profundezas, então, carregando o corpo envolvido na mortalha às suas costas, olhou para cima. De modo enigmático, levou o braço perto da boca e falou com um bracelete exótico ornamentando o seu pulso. Aquilo só podia ser artimanha de satanás! E foi naquele exato momento que a revelação do Senhor se fez presente!

     O céu escuro da madrugada, de súbito, pareceu se abrir num instante, embora não houvesse nuvens, tomado por um forte clarão. Olhei perplexo para o alto. Pestanejei incrédulo, pois custava-me crer no que os meus olhos me mostravam. Vi, assombrado, uma enorme construção flutuante acima de nossas cabeças de onde milhares de velas, resistindo inexplicavelmente ao vento da noite, espargiam uma luminosidade estonteante em todas as direções do firmamento!

   Creiam-me! Era um castelo descomunal, o maior que já vi, pairando no céu, emitindo uma luz mais forte que a própria lua! Minhas pernas fraquejaram. Ajoelhei-me largando a espada. Enquanto rezava desesperado para o Senhor me livrar do mal. De repente, as criaturas maléficas foram puxadas para cima sob o arroubo de uma ventania e engolidas por um buraco aberto na estrutura coletora de almas daquela construção do diabo.

    Em seguida, enquanto ouvia a movimentação dos homens aturdidos dentro do castelo, a fortaleza luminosa se elevou cada vez mais para cima, ganhando as alturas do firmamento, misturando-se às estrelas.

      Quando o padre Egbert e os outros finalmente se aproximaram de mim, apenas conseguiram ver um dos mais valentes guerreiros do exército do Rei Alfredo, o Grande, prostrado de joelhos no chão, com os olhos esbugalhados de medo, em choro convulsivo, apontando as mãos trêmulas para o alto e balbuciando frases ininteligíveis:

     “Eles vêm do céu... não vêm das profundezas da terra... os demônios se misturam às estrelas para nos confundir... Satanás está lá em cima também dividindo os céus com o Senhor, Meu Deus, em constante luta...  Eles vêm do céu, não vêm das profundezas da terra...”




 




 
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 22/09/2020
Reeditado em 04/12/2020
Código do texto: T7069840
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