A Estrada na Névoa

1.Joshua

Tudo o que contarei aqui é muito estranho, ou talvez já tenha sido comum em algum tempo. Acordei quatro dias atrás do mesmo modo que acordei em todos os dias dos últimos anos de minha vida: totalmente sem perspectiva. É difícil dizer isso, mas eu sou o que se pode chamar de um zero completo. A única coisa de que posso me vangloriar é ter conseguido um trabalho que me levou a morar aqui nos Estados Unidos, se é que isso é algo digno de glória. Talvez possa ser visto como uma superação, uma mudança de ares, a vinda de novos horizontes, mas ainda assim nada tão especial.

Como estava dizendo, quatro dias atrás acordei dentro do meu carro, um Ford antigo que comprei pela bagatela de 300 dólares. A única parte do carro que não estava de casamento com a deterioração era um rádio novo que instalei dois dias antes. No visor era possível ver as horas e o dia da semana. Para quem nunca conseguiu comprar sequer um relógio roubado, esse era quase um objeto para ser guardado em um cofre.

Quando abri os olhos, dei uma olhada ao redor para me situar novamente no universo, visto que o meu sono é mais pesado que uma manada de elefantes. Reparei que o céu estava ficando escuro, e que não passava nenhum raio de luz pelo nevoeiro que começava a se espalhar. Isso foi no mínimo esquisito, pois o relógio dizia que eu havia dormido apenas uma hora, e me lembro de que quando comecei a ficar sonolento, o céu estava totalmente limpo, e o sol estava ali, pronto para assar uns camarões.

Levantei o banco, tomei um gole da água e esperei alguns segundos até que o sono me abandonasse. Quando minha visão voltou ao normal, comecei a olhar ao redor para me situar novamente. Percebi que havia parado no acostamento de uma estrada, mas fiquei assustado com o cenário que se apresentou. O meu carro estava cercado por diversos outros, e a névoa parecia agora uma esponja. Parecia que se eu esticasse a mão e tentasse pegar um pedaço eu poderia até mesmo comê-la. Meu campo de visão estava restrito a alguns metros, com os faróis do carro ligados.

Não era possível que o clima houvesse sofrido uma transformação tão rápida e inesperada assim. Tentei ligar o carro, mas notei que não iria adiantar. Os outros veículos estavam estacionados de forma que o meu ficou parecendo uma peça de lego, e seria impossível sair de onde estava. Abri a porta, soltei o cinto de segurança e dei um pulo para fora do carro. Antes de meus pés encontrarem o chão eu já estava caído dentro de um buraco enorme, que por sorte minha, estava bem ao lado do carro. Caí de lado, bem em cima do ombro direito. Fiquei me contorcendo alguns minutos, pois o buraco tinha pelo menos um metro e meio de profundidade.

A dor do impacto demorou a amenizar, então simplesmente deitei ali dentro e deixei meu corpo relaxar mais um pouco, tirando a pressão de cima do ombro. Quando olhei para cima, parecia que havia sido embalado a vácuo dentro de algum recipiente. A névoa espessa escondia tudo o que havia do lado de fora daquele maldito buraco.

Acho que passaram alguns minutos desde o meu tombo, mas parecia que eu estava ali há dias. Aquela névoa não parecia muito convidativa aos meus olhos, e aquele buraco estava começando a parecer uma boa opção de refúgio. Quanto mais eu olhava, mais tinha a sensação de que algo estava muito errado ali.

Tomei coragem e tentei sair de lá. Eu tenho quase dois metros de altura, então, quando em pé, não foi difícil de escapar. Quando consegui subir e ficar em pé novamente, me senti totalmente desnorteado. Olhei ao redor para decidir o lado que deveria ir. Todos me pareciam iguais, então segui para qualquer direção. Tentei seguir a rua tateando os carros que estavam parados no acostamento, o que não era difícil, pois eram muitos.

Quando havia andado pela distância de uns 20 carros, algo me fez parar. Um som que lembrava um ambiente selvagem, uma savana. Era uma espécie de urro ou grunhido, mas muito diferente. Meus ouvidos não souberam identificar o som e nem ligar a nada específico. Aproximei-me de um de um dos automóveis e tentei, instintivamente, me esconder dentro dele. A porta abriu, e para minha felicidade, a chave estava na ignição. Sentei no banco do motorista e tranquei a porta com a trava. Comecei a sentir um leve tremor, mas não sabia se era o meu corpo que estava tenso e tremendo ou se era algo externo.

Girei a chave e obtive somente frustração. O motor tossiu como se reprovasse o novo ocupante do veículo e apagou. Tentei mais uma vez e o resultado foi o mesmo. Na terceira vez eu girei com tamanha raiva que a parte plástica do topo da chave quebrou, mas o motor agora estava funcionando. Esse carro estava longe dos demais, então foi possível me deslocar com ele. A aquela altura, já havia notado que não havia ninguém por perto, então pensei não haver problema em realizar aquele pequeno ‘empréstimo’.

Segui a estrada por algumas horas na direção oposta de onde eu comecei a caminhada. O avanço foi muito lento, pois não era possível ver muito além da frente do veículo. Comecei a visualizar árvores caídas, carros batidos, vez ou outra tinha que desviar de alguma coisa que travava as rodas.

Nessa etapa da minha estranha jornada, já não era possível ver as horas, pois não havia relógio nesse carro e eu não tinha mais nenhum dispositivo comigo que me possibilitasse isso. Fui calculando a passagem do tempo por dedução, já que nem a luz do sol era visível. Andei mais alguns quilômetros quando, muito de repente, outro carro passou por mim. Era uma pick-up, e pude contar cinco pessoas dentro. Não consegui ver todo mundo, mas o motorista parecia um homem de uns 40 anos, e no banco do carona havia uma mulher de cabelos loiros com um garoto pequeno ao colo. No banco traseiro havia mais duas pessoas, mas não pude ver como eram. Foram as últimas pessoas vivas que encontrei.

Mais adiante de onde havia passado pelo carro, começaram a surgir árvores ainda em chamas, e foi a essa altura que comecei a notar os corpos caídos na rua. Parei o carro e olhei para a calçada, onde havia um corpo caído. O que me chamou atenção foi que ele parecia se mexer levemente. Ele não, a camisa dele. O corpo estava debruçado na calçada, e havia uma mancha marrom bem ao meio das costas da camisa. Quando abri o vidro para olhar mais de perto e ver se não estava tendo alucinações, como se em resposta a minha inconsequência, o tecido se rompeu. Joguei o rosto para trás, bem a tempo de desviar da bola escura e peluda que surgiu de dentro do homem. Fechei o vidro rápido, um pouco antes de a coisa começar a atirar algo que pareceu um fio branco de varal em direção ao meu rosto. O vidro começou a escurecer onde o estranho fio havia encostado. Girei a chave e arranquei o carro o mais rápido que pude.

Que porcaria era aquela? Será que a bebida que havia tomado naquela tarde havia sido tão potente assim? Mas baseado no rubor do meu rosto e na aceleração do meu batimento cardíaco, acho que não era alucinação.

Estava cansado, assustado e totalmente perdido. Quando estava sem energias já, encontrei um supermercado, daqueles que vendem absolutamente de tudo. Quando apontei o farol do carro em direção ao estacionamento, algo me fez mudar de ideia. Alguns metros à frente, um pouco antes da porta de entrada do local, havia diversos rastros de sangue. Engatei a marcha ré, mas o carro não andou. Acelerei o máximo possível e senti que o carro não se moveu. De repente, ouvi um estalido, como se algo de metal houvesse rompido. Olhei para o retrovisor e vi algo escuro no vidro traseiro. Parecia se mover e ao mesmo tempo desaparecer com a névoa. Foi quando senti um ruído de algo deslizando, rastejando fora do carro. Olhei pelo vidro e bem nesse momento vi um tentáculo enorme deslizando, suas ventosas pareciam querer falar comigo. Aquela coisa era enorme.

Fechei as travas das portas e rezei. Deus do céu, eu não estava sonhando mesmo! Como azarado que sou o estalido de metal se repetiu e numa fração de segundo a porta do carona foi arrancada do veículo. O que vi me fez gritar com uma potência nunca antes imaginada. Era uma garra gigantesca, parecida com a de um caranguejo, mas que era maior que o próprio carro. Aquela coisa se movia com uma agilidade assustadora, e a facilidade com que amassou a porta fez minha bexiga enviar, pelo que pareceu, todo o líquido que eu havia bebido desde o meu nascimento. O tentáculo agarrou o carro e começou a sacudi-lo, o que só colaborou para aumentar o meu pânico. Eu só conseguia pensar em qual deveria ser o tamanho do dono daquela garra que arrancara a porta.

Como era praticamente impossível que tudo piorasse, saltei do carro num impulso e corri com todas as forças que tinha em direção ao supermercado. Olhei por cima do ombro e vi pelo menos uns 10 tentáculos levantando o carro e esmagando a lata, mas o ser que tinha a garra de caranguejo havia sumido. Tudo havia sumido na verdade, pois a névoa encobriu toda minha visão.

Quando achei que já estava tudo perdido, a porta do mercado se abriu e um homem, com nariz sangrando e uniforme do mercado, saiu alguns passos para fora e me esperou entrar, com uma tocha na mão. Caí no chão logo que passei pela porta. Olhei para a milagrosa figura, e vi que certamente se tratava de alguém da administração. Seus olhos, apesar de tristeza e cansaço, mostravam obstinação em defender aquele lugar. Ao lado de uma caixa registradora vi alguém caído. Era uma senhora que aparentava uns 70 anos, cabelo grisalho. Havia morrido com as mãos na altura do estômago, onde se espalhava uma mancha marrom na sua roupa amarela. Fiquei assustado e me recolhi contra a parede.

O homem disse que era o gerente do lugar, e que todos que estavam no mercado quando surgiu a névoa ou morreram fora do lugar ou dentro. Os que morreram fora, disse ele, haviam tentado sair e chegar aos veículos, mas não foram mais vistos. Os que morreram dentro da loja ou se suicidaram ou sucumbiram a loucura coletiva. Ele havia sido o último sobrevivente.

Conversamos sobre o que achávamos que estava acontecendo. Aquele pobre homem já estava louco. Ou talvez estivesse certo, quem saberia dizer? Segundo ele, as criaturas que estavam no nevoeiro eram enviadas de Deus para punir a humanidade.

A minha ideia era bem mais estranha. E se, talvez, essas criaturas já estivessem aqui o tempo todo, só não fomos capazes de encontra-las antes? Parecia-me mais plausível. No momento estou escrevendo sentado nos fundos do mercado, tomando a última lata de cerveja que restou na geladeira e comendo uma batata Pringles. Que belo modo de encerrar a carreira, não é?

O gerente decidiu sair e arriscar uma fuga para Deus sabe onde, o que não foi muito esperto, pois assim que saiu da porta, a criatura da garra de caranguejo dividiu-o em duas partes, não dando chance nem para um último suspiro. Foi assim que fiquei sozinho aqui. Comecei a pensar nas pessoas que havia visto naquele carro, no primeiro dia dessa porcaria toda. Como estariam? Será que haviam sobrevivido também?

Minha tinta está acabando. Acabei de ouvir um baque surdo do lado de fora, mas que parecia vir de dentro da minha cabeça. Estou correndo para a janela para ver se consigo enxergar algo.

Acho que acabei de descobrir o que fez o buraco onde caí aquele dia. Posso ver duas de suas pernas, que mais parecem prédios de 20 andares. A pele é cinza com tons de marrom, e uma espécie de inseto parasita parece viver nelas. Que porcaria é essa? Consigo ver somente um borrão onde acabam as pernas dessa coisa. Parece ter mais quatro pernas, mas ela parou bem acima do lugar, o que não me permite ver mais. Meu Deus! Isso não pode ser real! Como uma blasfêmia dessas poderia existir?

Estou ouvindo um ronco, quase um trovoar, que é emitido pela criatura. Acho que ela está se abaixando agora. Deus nos ajude! Posso ver o rosto dela agora. É enorme! O corpo tem tentáculos e apêndices por toda parte. Acho que ela irá devorar todo o prédio com uma só mordida. A cabeça da coisa parece ter o tamanho de um campo de futebol, é horrível!

Posso ver seus dentes, e a sua língua se abre em sete pontas. Minha mente não consegue suportar essa visão macabra. Acho que minha sanidade já deixou de existir a algum tempo. Espero que, se alguma coisa possa ser superior a isso, intervenha. Não acredito que alguém irá ler essa carta, mas caso aconteça, lembre: nós somos insignificantes. Essa coisa parece o Behemoth. Começo a pensar se o ser estranho aqui sou eu ou essas coisas. Já não sei mais. Não consigo mais escrever, algo em minhas mãos não está funcionando, parece que estão ficando tensas, e minha pele parece estar ficando escamosa. Como eu queria voltar a dormir!!

2. Vermon

Finalmente encontrei as últimas peças que faltavam para a invocação final. Os mestres da humanidade, nossos senhores que jamais deveriam ter dormido, agora poderão andar sobre a Terra novamente. O supremo virá do fundo dos mares. Ele repousa esperando para liderar novamente o levante dos antigos. O serviçal aguarda com os seus ansiosamente pela vinda do supremo, que irá convocar os horrores inimagináveis novamente.

Os antigos virão de outro mundo, do lugar onde nossa compreensão não pode sequer conceber uma imagem. Eles, que nos levarão para o caos novamente e deixarão tudo como era no início.

- Aqui, nesse pequeno templo, ofereço meu sangue como última chave para a abertura dos portões da cidade submersa. Ó mestre, aniquilo a minha existência em nome da sua vinda!

Volte para a sua casa!
Traga os seus!
Acabe com a sujeira que fizemos ao seu mundo!



3. Hartford

Hartford News,

Urgente!

Uma espécie de montanha com formações estranhas que se assemelham a tentáculos emergiu no terreno onde se localiza o cemitério da cidade. O exército estuda a formação em busca de respostas.

Populares relatam ruídos vindos da tubulação de esgoto nas ruas, parecendo sons de animais grandes. Uma equipe de especialistas foi enviada para procurar a causa dos sons, mas ainda não ouve contato dos profissionais com a equipe de controle.

Surfistas da costa leste avistaram uma espécie de casca na areia, parecendo com a casca de um crustáceo. Biólogos estão fazendo testes com o material para descobrir a que espécie pertence.
Luan T Mussoi
Enviado por Luan T Mussoi em 11/08/2020
Código do texto: T7032470
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