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O Último Prego do Caixão (Trecho Final?)

Você pode pensar que tudo isso é um absurdo ;
pode ser absurdo, mas é verdade
O Grande Deus Pan
Arthur Machen

 
          —…Desembucha. Nem sei como você tem a cara de pau de aparecer aqui na minha casa! — repreendia Vovó, andando irritada pela cozinha, enquanto o investigar se apegara à janela, fumando um cigarro e assoprando a fumaça para fora.
          Após o susto inicial e percebendo que o homem estava visivelmente desnorteado, Romualdo abaixara a arma e exigira que Irineu entrasse e sentasse numa das cadeiras, encostado à parede de tijolos nus. A contragosto, Vovó lhe trouxera toalhas, que ele se secara e as mantivera sobre ombros e cabeça, suas as expressões tão alheias que era como se não estivesse ali: havia perplexidade e descrença em seu olhar.
          — A língua do povo é mais nociva que qualquer julgamento… e aposto que a morte de Mirella já está em minhas costas — disse ele encarando o chão.
        — E é mentira? — retrucou o investigador, sem se voltar. Atento, ainda prestava atenção à movimentação por trás do vitrô.
          — Não, não é. Matei sim… tive meus motivos… e pode me prender se quiser, mas de uma coisa podem ter certeza: nunca mais na minha vida ponho confiança num ser humano.
          Romualdo e Vovó o fitaram, desconfiados.
          — E vou falar mais: só sei do que sei por que cometi um crime, senão estaria igual a todo mundo… morrendo de dó dessa mulher.
        Irineu estava tão perturbado que suas afirmações pareciam não fazer qualquer sentido e por isso Vovó se adiantou, pegando um copo na pia e lhe servindo um pouco de café quente.
          — Tomara que isso te clareie as ideias, porque já enrolou demais.
     Sem nem olhar para o copo, o homem afastou-o com as costas da mão, iniciando:
          — Fazia tempo que Mirella me azucrinava querendo cada vez mais dinheiro e a gente combinou de se encontrar atrás do campinho ontem à noite para trocar uns agrados. Eu gostava dela, mas aquilo já não dava mais certo… e a raiva subiu quando deixei dez cruzeiros cair e ela pegou, me dizendo que eu era um bosta por só ter aquilo no bolso. Um bosta pobretão; garanto que o Bigode da padaria tem um pãozinho maior para me oferecer, essas foram suas palavras.
          Irineu levantou a cabeça e olhou firme para os dois.
          — A raiva é uma cria do diabo que faz a gente perder a cabeça… e misturada com cachaça então, coisa boa não sai…
Nunca bati nem palma, mas quando fechei a mão e dei o primeiro soco, foi com tanta força que o corpo dela caiu para trás… e não sei o que aconteceu, só lembro de partir para cima e continuar esmurrando… e, quando as mãos já tinham cansado de bater, pegar uma pedra e bater e bater.
          Declinou o olhar novamente para o chão, acabrunhado.
        — Deveria estar endemoninhado, não tem outra explicação — falou, o olhar vazio como se estivesse revivendo o ocorrido, um tom pesaroso na voz —, porque Mirella nem se mexia e mesmo assim queria ver sua cara ainda mais desfigurada… e só parei quando vi aquelas pessoas do outro lado da margem, atravessando o córrego num bote.
         — Do que está falando? — irritou-se o investigador, visivelmente espantado. Esmagou a bituca de cigarro num cinzeiro da pia, logo em seguida pegando outro e acendendo. — Quem atravessou o córrego?
          — Só posso falar o que eu vi: cinco pessoas… duas ficaram numa margem e outras três atravessaram no bote… caminhando direto para os fundos da casa dos Augustine.
          — Valei-me, minha Nossa Senhora! — exclamou Vovó levando a mão à cabeça, subitamente compreendendo aonde tudo acabaria.
          — Não sei quanto demorou, quem eram e o que fizeram… minha cabeça rodava por causa da raiva e da cachaça… mas vi que entraram certinho na casa e depois saíram com algo enrolado num pano escuro… e vi também alguém correndo e os alcançando perto da margem, falando alguma coisa para uma das pessoas, desenrolando o embrulho e se abaixando como se desse um beijo, sei lá. E esse alguém voltou correndo para a casa e os três subiram no barco. Na hora não pensei duas vezes: corri de fininho para fugir no meu próprio crime.
          — Tem ideia do tinha no embrulho… reconheceria alguma das pessoas? — inquiriu o investigador, desconfiado.
          — Olha, se não tivesse ouvido a mãe do menino chorar daquele jeito no rádio, teria enterrado esse assunto… para ser bem sincero, já tinha arrumado as malas e só esperava a chuva passar, quando ouvi a notícia.
          — Ainda não entendi aonde você quer chegar — disse Romualdo, incisivo. A um completo leigo, tais insinuações eram demasiado evidentes; entretanto, aventava a possibilidade de Irineu estar inventando aquilo para minimizar a atrocidade de seu próprio crime ou, se fosse verdade, uma barganha com tal revelação. — Diga exatamente o que está acontecendo.
          O homem não respondeu de imediato, sentindo-se na verdade um tanto acuado; por outro lado, Vovó se afastou, encaminhando-se para a porta, pensativa. E foi ela que respondeu às indagações do investigador:
          — Sei o que ele está querendo dizer e venha aqui que vou te mostrar.
      A chuva prosseguia intensa, mas ainda assim Vovó conduziu-o a um determinado ponto na horta, os dois ficando encharcados em segundos.
         — Está vendo aquele banquinho no quintal dos Augustine? — indicou apontando o objeto por trás do portão de madeira da casa. — Toda manhã Gasparzinho se sentava ali para dar comidas às galinhas…
          — A senhora me traz no meio da chuva para dizer isso? — irritou-se ele, aprontando-se para voltar à casa, porém Vovó o agarrou pelo braço.
          — Lembra do que te contei sobre aquele crentezinho, o Eddy, e as safadezas que ele faz com a mãe de Adisa quando o marido vai trabalhar?
    Nesse Instante, Romualdo parou e a encarou, intrigado. Recordava-se, evidentemente. Entre os muitos assuntos que conversavam, Vovó lhe falara sobre o caso dos vizinhos Edgarpo e Zuri, esposa de Adeben. O marido não era rude, porém encarcerava a jovialidade de Zuri em modos condescendentes e longos vestidos — jovialidade que o vizinho "temeroso a Deus" soube libertar com gracejos por sobre o muro aos fundos da casa. Os dois eram muito discretos e Vovó apenas tomou conhecimento do fato quando certa vez Adisa comentou que sempre que vinha cuidar da horta e depois voltava para casa, a mãe estava cansada e às vezes despenteada. Mas só quando o papai vai trabalhar, ele comentara com ingenuidade. Quando o papai fica em casa, a mamãe nem fala com o homem do muro. Vovó pediu para que não se preocupasse, entretanto passou a prestar atenção, notando que, à saída de Adisa, Zuri retrancava o portão — e certa ocasião a chamou sob um pretexto qualquer e ela veio arrumando os cabelos, a roupa amarfanhada.
          — Será que os dois tramaram o sumiço do menino? — supôs Vovó.
          — Com que finalidade?
          — Eu vou saber? Já não aconteceu do pai dar cabo da vida dos filhos para ficar com a amante?
          Era uma possibilidade — e o comportamento estranho de Edgarpo levantava ainda mais dúvidas.
          — Acha que a mãe está envolvida?
          — Pois é. Olha o banquinho e o portão passado a corrente. Zuri não deixava o portão aberto por nada…e te digo com esses olhos que a terra a de comer que Gasparzinho não estava ali de manhã — sentenciou ela, corroborando o relato de Irineu e cravando um último prego em toda a encenação de Zuri.
          — Tem razão… preciso avisar o departamento — assentiu Romualdo, alarmado. — Nunca vi um caso se complicar tanto e tão pouco tempo…
De súbito, um Monza vermelho passou devagar ao lado da viatura, lhes chamando a atenção.
          — É o carro do Pastor Nicolas… ex-pastor… de vez em quando ele visita o Eddy — murmurou Vovó, como se falasse sozinha.
          O veículo foi ao final da rua e fez o retorno, parando frente à casa de Edgarpo, que saiu às pressas, entrando no carro e partindo.
          — Minha arma, minha arma! — gritou o investigador, esquecendo-se que a havia deixado sobre a mesa.
          Ele correu para buscá-la, mas demorou a retornar. Reaparecendo à porta, posicionando o revólver no coldre, gritou:
          — Só me faltava essa: Irineu sumiu!
       Afoitos, os dois entraram novamente na casa, atravessando a cozinha, vasculhando a sala, o banheiro e quartos, finalmente encontrando Irineu aos fundos.
          — Pelo amor de Deus, o que mais falta acontecer?! — indignou-se Romualdo.
       Com toalhas enrodilhando o pescoço e presas à viga de madeira, o Irineu pendia enforcado, a face contraindo-se em espasmos finais, a cadeira em que estivera sentado na cozinha tombada no piso evidenciando seu suicídio.
          — Vamos tentar suspender! — berrou, pegando nas pernas do homem e forçando-o para cima. — Quando a gente acha que as coisas já estão ruins, elas conseguem ficar pior!
     Mal acabara de falar, ouviram uma voz gritando desesperada. Acorreram, deparando com a vizinha dos Augustine.
          — Acode, Vovó, acode! O córrego ta enchendo, vai inundar tudo!
Sabor de Sangue e O Marceneiro
Enviado por Sabor de Sangue em 25/07/2020
Reeditado em 27/07/2020
Código do texto: T7015927
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