A dívida sobrenatural - VI
O homem rabugento segurava um copo de leite com alguns cereais, perambulava pela casa como quem procura alguma coisa, mas não se lembrava do que era.
- Porcaria! - gritou ele.
Bateu o pé no sofá e, de quebra, ainda derramou um pouco do leite no chão. Xingava com todos os palavrões que conhecia. Pensou em voltar para a cozinha e ir ao quintal buscar um pano para limpar a sujeira, mas desistiu e, com raiva, jogou longe a xícara que segurava, fazendo dela vários pedacinhos ao chocar-se com a parede.
- Inferno de vida, desgraça! Tudo dá errado, desde que a vadia daquela mulher resolveu fugir e destruir nosso destino. Mulher maldita! Garoto infernal! - vociferava, com muito ódio.
Felipe ouvia tudo do lado de fora, não poderia entrar ainda, tinha que esperar mais um pouco. Enquanto seu pai, enfurecido, descontava a raiva com gritos e xingamentos, acabou sentindo uma dor no peito, como se estivesse tendo um infarto. Pôs a mão no peito e inclinou-se.
- Droga! Inferno! Veio me buscar, demônio? Não tenho mais nada a perder mesmo!
Disse ele, enquanto tentava subir as escadas para ir ao quarto, lá ele tinha alguns remédios, em sua maioria calmantes, pensou que poderia aliviar as dores. O rapaz ouvia os passos diminuindo, pensou que ele deveria ter ido dormir, a voz demoníaca o disse que já poderia entrar na casa. Ele tentou abrir a porta dos fundos, porém, não conseguia, o infeliz de seu pai trancara a porta, se fizesse barulho tentando forçar ou até arrombá-la seria capaz do homem ouvir.
O maligno surgiu, então, e o pegou pelo braço, puxando-o contra a porta e o fazendo atravessá-la, entrou, enfim, dentro daquela casa que passou um curto tempo enquanto não tinha sido enfiado dentro de um seminário.
- Não o mate, quero apenas que o deixe inapto a se defender contra ti, faça algo para neutralizar ele, depois, lhe direi o que terá de fazer.
- Certo! - disse Felipe ao demônio, que sumiu com o vento.
Olhou para a cozinha, era difícil ver, por mais que conhecesse o lugar, por conta da falta de luz, não queria acender nenhuma lâmpada, achava que fazendo menos barulho o possível seria melhor. Viu refletir n'algo que pensou ser uma prateleiro uma lâmina, aproximou-se.
- Ah!
Era uma faca, das grandes e bem afiada, abriu devagar a prateleira e puxou a faca de lá, brilhante, muito nova, parecia que nem usada era. O cabo da faca era de um vermelho intenso, parecia até de rubi, com uns símbolos estranhos. Sentiu então duas mãos, bem grandes, conhecia bem, tanto é que não levou um susto.
- Essa faca é minha, coloquei especialmente aí para você. Faça o que deve. - disse em seu ouvido.
Suspirou, buscou ainda algumas cordas e panos, seriam necessários. Andou pela casa, chegou na sala e escorregou com o leite que fora derramado por seu pai, não tinha se lembrado dele, esbarrou num jarro que ficava ao lado, ele ia caindo, mas um instinto que não sabia de onde surgiu o fez segurar o objeto antes que caísse e fizesse um barulho grande. Colocou de volta no lugar e se recompôs, subindo as escadas devagar.
Cada degrau que subia, um suor lhe descia, ia lentamente, para não fazer barulho, já podia ver o corredor daquele andar surgindo, viu a porta do quarto entreaberta, enfim, estava na parte de cima da casa. Suspirou.
Seguiu em frente, chegou a porta do quarto de seu pai, o viu dormindo, com o braço lhe cobrindo o rosto, abriu a porta com toda a delicadeza que lhe era natural, ainda mais, para evitar ruídos, e entrou no cômodo.
Andou até o lado da cama dele, observava ele dormindo, aquele homem asqueroso que o fez sofrer, lhe batia quase que diariamente, sem razão alguma, o fazia passar fome, tratava feito bicho e o abusou das formas que podia, até se livrar, o jogando num lugar que não conhecia ninguém e era tratado como estranho por todos.
Foi então que a janela do quarto quebrou-se, do nada, fazendo um estrondo de estilhaços caindo. Ele acordou com o susto e viu o filho lhe observando.
- Oi, pai.
Foi a última coisa que ouviu antes de desmaiar, recebeu uma pancada muito forte e acabou desfalecendo...