O boi de dona Henedina

Dominguinhos, sendo o preto da casa, acompanhou a patroa, como sempre. Ele já tinha visto ela fazer aquilo antes, por isso tinha medo da patroa. Ela não era ruim com eles, os pretos, mas fazia coisas ruins acontecerem com os brancos. Os pretos, porém, não a respeitavam pelo tratamento mais brando oferecido pela fazenda Santa Ângela, se comparado a outras localidades. Respeitavam dona Henedina Céspires por outra razão.

Dentro da cocheira, Dominguinhos arrumou a lenha para fazer fogo. Antes de ascender, a patroa verificou se a lenha possuía as marcas que ela pediu, uma espécie de letra “A” invertida.

Dominguinhos passou a tarde toda marcando os pedaços de lenha com o símbolo, riscando a madeira com uma faca que dona Henedina lhe dera. Trouxe também o ferro, para marcar o boi. Dona Henedina andou pela cachoeira procurando algum que a agradasse. Viu um bem gordo, branco com manchas marrons.

- Vai ser esse.

- Precisa de corda, sinhá?

- Não carece.

A patroa foi até o boi, que estava deitado. Abaixou-se como quem fala para uma criança e começou a sussurrar palavras estranhas.

- Oh Ninsuna, Oh Ninsuna... – a mulher parecia chamar por algo, falando com um sotaque carregado, com sílabas demoradas – Oh Ninsunaaaa!

Um vento leve soprou sobre a cocheira. Os animais ficaram todos agitados, exceto o boi que dona Henendina segurava. Aos poucos, o fogo foi nascendo em meio a pequena fogueira feita com a lenha marcada. Ascendeu-se sozinho. Dona Henedina sorriu e segurou o rosto do animal parecendo uma mãe que afaga um filho. Dominguinhos estava a alguns metros, mas pode ver dona Henedina beijar o bicho na boca, como quem beija um homem por quem tem paixão. Os poucos pelos de Dominguinhos se arrepiaram ao ver a língua da patroa forçando a interação com a boca do gado.

- Bota isso junto – ordenou para Dominguinhos.

Dona Henedina entregou um chumaço de cabelo amarrado para o escravo, que atirou o cabelo no fogo. O boi ficou extremamente dócil, parecia até uma pedra, de tão manso. Henedina esperou as chamas se espalharem na pequena fogueira, para então cuspir três vezes no fogo. A cada cusparada, o fogo chamuscava, lançando altas faíscas, como se respondesse ao cuspe. O preto Dominguinhos tremia. Já tinha visto antes, mas aquilo deixava ele apavorado.

- Esquenta o ferro – ordenou a senhora.

Dominguinhos obedeceu. O símbolo do ferro era o mesmo que o desenho da lenha. Henedina pegou o ferro e falou outras palavras estranhas, depois marcando ela mesma o animal, que nem se mexeu.

- Mina Daku Awilum – Henedina sussurrou para o boi, depois virou-se para o escravo - apague o fogo e limpe tudo.

O homem obedeceu. No dia seguinte, armou-se uma grande confusão na fazenda. O fazendeiro Alberto Godinho estava lá para fazer os acertos com Henedina. Os escravos ficaram sabendo que na cidade, depois da missa, o fazendeiro havia se estranhado com a sinhá, dizendo que ela devia a ele muitos contos de réis, pois os novilhos que vendera a ele estavam todos doentes. Essa, pelo menos, era a versão pública.

Por debaixo dos panos, Dominguinhos e a mucama Maria conversavam sobre os segredos da patroa.

- O tal fazendeiro vinha aqui comer a carne – contou Maria, certo dia, para Dominguinhos – e ele é homem casado. Veio um tempo, depois a patroa cansou dele. Dispensou o coronel.

Assim se esclareciam as coisas para Dominguinhos. O fazendeiro estava com raiva de dona Henedina, raiva por ser largado pela mulher. Daí criou um caso qualquer envolvendo negócios para se vingar. O normal era o contrário. O fazendeiro achou, como alguns outros, que a família das Céspires era um bando de mulheres inofensivas. “Pobre coitado”, pensava a mucama Maria.

Dona Henedina era viúva, mas viúva bonita e esperta. Pelo que falavam, a família sempre foi de viúvas. A mãe e a avó de dona Henedina também ficaram viúvas muito cedo, de tal forma que o povo já não estranhava que a mulherada administrasse tudo, mas quando alguém novo chegava na cidade, como era o tal fazendeiro Alberto, que por ali se estabelecera fazia apenas uns três anos, achava que podia impor-se como homem. Dominguinhos sabia que cedo ou tarde ouviria a notícia ruim.

No dia da confusão na fazenda, ocasião na qual o fazendeiro chegou com muitos homens para exigir de dona Henedina que lhe pagasse “o que devia”, ninguém do lado de Henendina interferiu. A própria patroa mandou servir café e comida a todos, sendo extremamente gentil, apesar das provocações e grosserias do fazendeiro Alberto Godinho. Henedina disse que, apesar de não ter na própria consciência nenhuma culpa, daria para o homem o reembolso. Deu a ele dez cabeças de gado criado, inclusive o boi que fora marcado na noite anterior. Dominguinhos reconheceu o bicho de imediato.

- Lhe dou até meu boi mais bonito, para deixar de conversas a meu respeito – advertiu Henedina, indicando o animal marcado.

- Faz bem, dona Henedina. Fique tranquila, que sua fama não há de ser outra, senão a merecida.

Os capangas que acompanhavam o fazendeiro Alberto riram de Henedina. Pode-se ouvir até alguns comentários maldosos. Os escravos e demais funcionários da fazenda de Henedina não riram, pelo contrário, ficaram aflitos. A mucama Maria, já idosa, sentiu um arrepio gélido ao ver o sorriso discreto nos lábios da senhora. Era vivida o suficiente para saber que as coisas feitas daquele modo com as mulheres dali não terminavam bem.

Passou-se uma semana. O fazendeiro Alberto, depois de uns goles de cachaça, cantava a vitória aos quatro cantos. Entusiasmado, deu ordens para matarem o “boi mais bonito” que ganhou de Henedina, pois queria comer a carne do danado antes que o sabor da vitória esfriasse.

- Quero que matem com a marreta! – Ordenou o fazendeiro.

Os homens de seu Alberto foram atrás do bicho, o enlaçaram e preparam tudo para o abate. O fazendeiro quis ver de perto. Na hora que desceram a marreta para matar o bicho, porém, uma surpresa aconteceu, marcando para sempre a vida dos peões e escravos em torno da cena. Na hora em que a marreta acertou a cabeça do gado, foi a cabeça do fazendeiro que estourou. O peão que dera o golpe largou a marreta no mesmo instante. Os homens tentaram acudir Alberto, mas pouca diferença fez. O sangue jorrava do crânio rachado do fazendeiro.

O boi, que até então estava manso como uma ovelha, agitou-se, com uma força descomunal. No esforço de segura-lo, um dos homens se machucou, saindo da luta com a perna quebrada. De maneira surpreendente, o animal escapou das cordas, fugindo. Apavorados, os homens correram dali.

No fim daquele mesmo dia, dona Henedina estava na varanda de sua casa, tomando um gole de café, na companhia da mucama Maria e de Dominguinhos, quando pôde ver seu boi entrando tranquilo e se achegando na sede da fazenda. Ela sabia que ele voltaria, por isso mandou deixarem a porteira aberta. O animal parou em frente a varanda, fixando seus olhos grandes em dona Henedina.

- Vai descansar, Amelserru. Vai descansar – falou a mulher.

O bicho obedeceu e seguiu no rumo da cocheira. Os dois escravos que assistiam a cena ficaram boquiabertos e apavorados, receando até de olhar para a senhora branca, que começou a rir. Um riso alto, estridente. Um riso antigo, assustador e misterioso como ela própria. Um riso de vingança que cortou aquela tarde quente de segunda-feira.

João Pedro R
Enviado por João Pedro R em 07/07/2020
Reeditado em 07/07/2020
Código do texto: T6998635
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