O Vizinho do 14

O prédio de apartamentos era bastante antigo. Mesmo assim, estava em boas condições e tinha um módico preço no aluguel. Mudei-me para lá com minha filha e minha irmã mais nova. Ana estava desempregada havia algum tempo e, por isso, podia ficar em casa cuidando de Júlia que, além de ter apenas seis anos, também tinha necessidades especiais. Com Ana em casa o dia todo eu podia seguir minha rotina na loja de conveniências do posto sabendo que ela estaria sendo bem assistida.

O apartamento em si era pequeno, porém aconchegante. O pouco espaço não era um problema. Quanto às instalações, tudo funcionava muito bem: luz, água, gás, telefone, nada de que se queixar. Escadarias, corredores e elevador, sempre muito bem limpos. Tìnhamos, em Sônia, uma boa síndica. Também não tinha reclamações da vizinhança: pessoas discretas, silenciosas. Vez ou outra era possível ouvir música no apartamento de Olga, mas nada que causasse alguma perturbação. Também percebia, nas madrugadas, o que parecia ser uma máquina de escrever.

Entre os vizinhos, chamava-me a atenção o do apartamento 14, logo em frente ao meu . Tinha uma aparência respeitável: meia idade, bem vestido, usava óculos, cavanhaque e tinha um cabelo bem cortado. Não nego ter prestado atenção no fato de ter um porte físico altivo. Unia o apelo intelectual ao físico e eu, separada já havia algum tempo, obviamente fantasiei situações com o novo vizinho. E se ele batesse em minha porta emprestar um pouco de açúcar? Eu era uma mulher madura mas, por conta da filha ainda criança, não costumava me envolver com qualquer homem, principalmente se por perto ela estivesse. Sempre fui muito prudente nesse sentido. O vizinho me atraía sim, era um homem bonito e percebi, nas poucas vezes que o vira, que também havia reparado em mim , mesmo que seus olhares fossem tímidos e desajeitados. Comentei com Ana, mas ela riu dizendo ser azarada e não havia visto até então o tal bonitão, como eu já o chamava.

Os dias se seguiram sem que eu o visse no corredor. Assim como os outros vizinhos, parecia ser bem silencioso e discreto. Não tinha carro, pois sempre o via, pela janela, atravessando a rua a pé, saindo ou chegando, com uma maleta do tipo executivo. As roupas me faziam pensar ser professor, assim como a rotina de horários. Pensei ser professor universitário. Pelo ar mais reservado, de exatas. Tinha cara de professor de matemática.

Passada mais uma semana, ouvi batidas na porta. Pelo olho mágico, percebi ser o vizinho do apartamento 14. Abri a porta somente o quanto a tranca permitia. Um velado boa-noite se fez ouvir.

- Desculpe, sei que é tarde, mas você teria um pouco de açúcar?

- Só um minutinho...

Fechei novamente a porta e busquei o tal açúcar na cozinha... que cantada amadora, pensei. Júlia assistia a um programa de auditório na TV e Ana conversava através de uma webcam com o namorado. Acredito que nem perceberam nada. Será que conseguiria lhe entregar o açúcar sem soltar a tranca da porta? Não o conhecia e não deveria arriscar... apesar da boa aparência, eu nada dele sabia. Tudo o que tinha eram suposições... e sabemos que há pedófilos, pervertidos, psicopatas, muitas vezes escondidos sob uma boa roupa e respeitáveis óculos de grau.

A tensão se desfez assim que ele, finalmente, voltou ao apartamento e tranquei novamente a porta. Não nego que me sentia atraída por ele, era realmente um homem bonito, mas sempre pensava que tinha uma filha de seis anos e uma irmã mais nova. Me sentia, e era, responsável por ambas, e não poderia, de maneira nenhuma, expô-las a algum tipo de risco.

Dois meses se passaram sem que eu tivesse mais algum tipo de interação com o vizinho do 14. Julia curtia as férias da escola e dava a Ana cada vez mais trabalho. Nesse tempo, algumas vezes vi o vizinho atravessando a rua, em frente ao prédio, sempre com sua valise... meu Deus...me senti tão antiquada usando tal termo...valise... mas era isso afinal de contas, uma valise que eu imaginava conter livros. Sim, ele devia ser professor universitário. Professor de matemática.

Chovia muito, e lembro bem de ser um sábado à noite. Estava sozinha, pois Júlia passava o final de semana com o pai e Ana estava no cinema com o namorado. Ouvi baterem à porta.

- Desculpe, sei que é tarde mas... você teria um pouco de açúcar?

- Só um minuto...

Fechei novamente a porta e fui a cozinha buscar o que ele pedira, pensando que ele tinha péssimas estratégias para cantar uma mulher. Em duas vezes que tivemos contatos, nas duas me pedia açúcar? pensei que deveria ficar atenta. Ele poderia ser mais inteligente que isso, se a intenção era mesmo me assediar.

Mas ele não se encontrava mais sob a porta quando voltei com o açúcar. Hesitante, olhei para o corredor que se encontrava totalmente vazio. Apenas alguma música, ao longe, se fazia ouvir, e eu sabia ser do apartamento de Olga, como já era de costume. Retirei a tranca e percebi que a porta do apartamento 14 estava aberta. Acredito ter sido um erro, imprudência minha, mas caminhei, pé ante pé, lentamente até lá e adentrei... consegui ver, no centro da pequena sala, uma escrivaninha com uma máquina de escrever. Havia uma folha ofício nela. Quem colocaria uma escrivaninha no meio de um cômodo, no meio de uma sala? Coisas assim são feitas para colocar frente à parede, ou a algum canto... alguns quadros na parede, daqueles vistos em lojas populares. Não havia sinal do professor. A curiosidade matou o gato, dizem e, nesse caso, podíamos dizer que o ditado popular se fazia perigosamente sugestivo. Quem era aquele homem? Eu sequer sabia se seria realmente um professor e, quando dei por mim, me encontrava em seu apartamento, observando sua máquina de escrever e sua desajeitada sala.

- Desculpe, eu corri atender o telefone.

Não consegui disfarçar o susto que levei e um agudo grito brotou de minha garganta. Desconcertado com a situação, ele agora pedia, insistentemente, desculpas por ter me assustado.

- Tudo bem, desculpe...eu que sou uma boba mesmo..

Ele parecia atrapalhado. Eu também. Posicionava-se em frente à máquina de escrever como a tentar desviar minha atenção. O que poderia estar escrevendo que fosse tão sigiloso? Eu já considerava péssima a ideia de ter deixado meu apartamento e entrado no 14, sendo que era noite e me encontrava sozinha em casa. O telefone que tinha em mãos toca novamente.

- Pode atender, eu espero, não tem problema.

- Não, não... não é nada importante, deixo pra depois.

Ele retira a folha que estava na máquina de escrever e a guarda na gaveta da escrivaninha. Assim que o faz, me convida a sentar. Os sofás são bastante surrados. Parece um tanto quanto nervoso e atrapalhado, apesar de, mesmo assim, sugerir ser bastante culto. Aceito o convite e começamos a conversar, quebrando o gelo e encontrando, enfim, alguma descontração. Confirmou ser professor, porém de História, e não universitário. Tinha uma filha que fora levada pela ex-mulher e fazia tempos não via. Maria. Tinha a mesma idade de Júlia. Era, na verdade, um homem bastante solitário, apesar do sex appeal. Mas era também muito desajeitado e esquisito. Parecia não ter muito jeito para lidar com mulheres.

Todos os relacionamentos que tive, depois da separação, foram fugazes. Não queria algo sólido, pois pensava sempre em Júlia. Dessa forma, uma ou outra aventura romântica que tive sempre se deu quando Júlia se encontrava com o pai. Ana também não deveria estar por perto. Por conta disso tudo, foram poucos os encontros que tive após a separação.

Em determinado momento ele levanta e pergunta se me importo que feche a porta, pois sentia uma corrente de frio vinda do corredor. Concordei e aceitei ouvir música, e também bebemos vinho. Ele era, realmente, atrapalhado, mas sabia o suficiente para lidar com aquela situação. Sabia contar piadas. Estávamos ambos muito carentes. Não me preocupei com Ana porque sabia que, depois do cinema, ela dormiria na casa do Pablo.

Na manhã seguinte, acordo com o barulho do chuveiro. Ele deveria, logo, sair para suas aulas. Silenciosamente, voltei ao meu apartamento. Eu não fantasiava nada a respeito dessa relação. Não esperava nada além de, quem sabe, outra oportunidade para mais um encontro. Eu era uma mulher madura, com mais de 40 anos, sem tempo ou paciência para dizer que estaria namorando alguém. Acredito que o mesmo se aplicaria a ele.

Os dias foram passando e eu ouvia a máquina de escrever, ao longe, sempre de madrugada, quando havia mais silêncio no prédio. Ana dizia que eu tinha ouvidos caninos, pois ela nada ouvia. Mas Júlia dizia também ouvir as hábeis teclas. Era algo confidencial. Na minha imaginação, ele escrevia sobre o que entre nós havia acontecido... que besteira, o que poderia existir de sigiloso nisso? nunca mais veio pedir açúcar. Concluí que perdera o interesse, coisa que em nada me surpreendeu, era bastante típico, aliás. Mas, mesmo assim, me senti triste por isso. De qualquer forma, era melhor pensar que tirei tanto proveito daquela noite quanto o desajeitado professor de História.

A rotina seguia. Além de ocupar o tempo com o trabalho, eu pesava voltar aos estudos. Júlia dava cada vez mais trabalho à Ana que, no entanto, se apegava cada vez mais à sobrinha. O prédio continuava tranquilo, com apenas, vez ou outra, a música de Olga, ao longe, confundindo-se com o teclado da máquina do professor. Até que, naquele frio final de semana, vozes de crianças foram ouvidas. Correria, bagunça. Uma família chegava ao prédio e era Sônia quem os acompanhava. Param em frente ao apartamento 14 e ela utiliza a chave para abrir a porta. Espiando pelo quanto a tranca permitia, vejo-os entrando no apartamento do professor... com o pouco ângulo de visão que tenho, consigo ver que, aparentemente, o cômodo se encontra vazio. Não vi quadros baratos na parede. Eu deveria, também, conseguir ver a escrivaninha que ficava estranhamente posicionada no meio da sala.

Depois de uma visita de aproximadamente vinte minutos, os pretendentes ao aluguel do apartamento partem. Consigo ouvir que fecharão o contrato tão logo consigam um fiador. Movida pela óbvia curiosidade, procuro Sônia para saber quando o professor tinha se mudado. Não me surpreenderia que fosse estrategicamente num momento em que eu estivesse no trabalho e Júlia, na escola. Ana, talvez, conversasse com Pablo pela webcam e nada perceberia, pois nenhuma delas nada me disse.

- Ah sim, eles querem ficar com o apartamento, parecem ser gente boa, talvez as crianças sejam um pouco barulhentas, mas vamos saber lidar com isso...

- E ele... o professor – perguntei desconcertada – quando se mudou?

Era um pouco constrangedor me expor daquela forma. Sônia, com certeza, ligaria os pontos e poderia deduzir o rápido relacionamento que tivemos. Mas isso nada significava se comparado à decepção de sequer ter recebido um “nos vemos por aí”...

- Professor? Você ouviu essa história também é? Sim, um professor morou aqui, faz bastante tempo, era um sujeito bastante esquisito, mas nunca deu incômodo algum, até o dia em que se matou aí dentro, e a partir de então ficou difícil alugar... o apartamento 14 tava vazio desde muito antes de você e sua irmã chegarem aqui. Ficou bastante conhecida a história da carta que ele digitou, na máquina de escrever, e deixou para a filha, antes de se matar. Mas, segundo dizem, a ex jamais mostrou tal carta à filha... espero que esse pessoal não escute essas histórias e permaneça por mais tempo que os inquilinos anteriores. Vê se não fica falando disso por aí, ok?